desenho de Mário Filipe
Após o repasto,dispersaram os convidados e alguém se lembrou de
Rimskikorsakov.
A noite - quente -esplendorosa e sempre poética caía em nuances
polícromas - as cigarras ensaiavam cânticos sedosos que afloravam
a folhagem.O silêncio melódico estava reposto e a lua cheia tão linda,
desenhava no chão os recortes da casa,iluminava os nossos corpos.
Cantava.
Estávamos no campo,no mar arável das videiras.
Apesar do êxtase a família residente ainda se propôs ouvir o espargir
da água na rega automática.
Entretanto a paz onírica foi interrompida abruptamente e a família
unida - declarou caça a uma mosca varejeira que distraída das regras
democráticas entendeu devassar a cozinha.
A mosca,de facto,era um espectáculo - uma verdadeira besta de insecto.Enorme de asas,gorda,cor do petróleo,patas felpudas,celulite irreversível.Uma suculenta matrona.
Alguém afirmou ter-lhe visto uma cremalheira panorâmica de alvos
dentes aguçados.Na verdade não tinha lábios - exibia com mau gosto erótico uma beiça,tipo ventosa e cheirava a orçamento do estado.
Resultado - mobilização geral.
Em zig-zagues acrobáticos sobre as nossas cabeças,bufava,zunia,
zumbia zumzuns,riscava o espaço com uma baba fluorescente.Quase
política de direita,esfregava tímida as patas dianteiras e discursava arrogante sem aplausos nem substância,ao seu jeito - fluente palha
e em falsete.
Onde poisava deixava marcas,ameaças,impropérios,prepotências
e algumas rezas.Mostrava de quando em vez os olhos fulvos em desafio à lua cheia.A espaços tremulava as asas que pareciam bracinhos,como se fosse uma libelinha.Queria não parecer uma mosca varejeira.
Conclusão - na ausência de uma política coordenada e eficaz para a segurança dos cidadãos - voluntários - movemos-lhe caça cerrada,
meticulosa,com estratégia e tácticas cientificamente aceites na comunidade europeia.Utilizámos códigos em surdina,transmissões
gestuais - armas em riste.
Para a família a questão era tribal e honorária.Fervia-nos o sangue
nas coronárias e houve mesmo alguém que gritou - abaixo a mosca,
viva a liberdade.
Enfim - até o doce de tomate ,caseiro,que demorou à nossa avó seis
horas a cozinhar em lume brando,colher de pau em tacho de barro -
tomates sem pele nem graínhas,ao som da música - até o doce de tomate,cozinhado como quem vai a Fátima a pé lhe oferecemos de bandeja.
Demos-lhe poesia de Florbela Espanca,fizemos-lhe a mesa,demos-lhe
cama e roupa lavada.Estudámos em concílio improvisado o comportamento social dos insectos - chegámos mesmo a ler algumas
crónicas do Eduardo Prado Coelho - tentámos em pausas consensuais
alguns contactos políticos.
As incontronáveis férias são assim.As lojas do cidadão ficam desertas
ficam abertas apenas as maçónicas.O país encerra para transpirar e
até os políticos são considerados filhos de deus.
Entretanto a perversa mosca voejava na cozinha,mobilizava a família.Por vezes aparentemente brincalhona - saltitava nos ponteiros do relógio - escondia-se no buraco da fechadura da porta,nos buracos do queijo flamengo,nos póros da nossa imaginação.Formigava no pingo de suor que escorria lento,curto e grosso pela orelha da avó e em raides
fulminantes,tresmalhava,espreitava e sumia-se como o ar em movimento.
Na sala ao lado - a rádio anunciava mais um ataque à função pública
e a verejeira,espartana mas exausta,finalmente poisava e sorvia no doce de tomate - o seu último desejo.Uma rendição.
A família em bloco,felicíssima - caíu-lhe em cima.Foi mesmo comovente ver toda a tribo unida em torno de uma questão concreta.
Reunidos entendemos não matar a varejeira como se mata uma qualquer mosca.Partimos todos em procissão e fomos depositá-la,
com o doce de tomate irrepetível,junto de um magnifico cipreste.
Regressámos - em silêncio.A lua ainda estava cheia.O Voo do Moscardo - oferecia-nos os últimos acordes.
Após o repasto,dispersaram os convidados e alguém se lembrou de
Rimskikorsakov.
A noite - quente -esplendorosa e sempre poética caía em nuances
polícromas - as cigarras ensaiavam cânticos sedosos que afloravam
a folhagem.O silêncio melódico estava reposto e a lua cheia tão linda,
desenhava no chão os recortes da casa,iluminava os nossos corpos.
Cantava.
Estávamos no campo,no mar arável das videiras.
Apesar do êxtase a família residente ainda se propôs ouvir o espargir
da água na rega automática.
Entretanto a paz onírica foi interrompida abruptamente e a família
unida - declarou caça a uma mosca varejeira que distraída das regras
democráticas entendeu devassar a cozinha.
A mosca,de facto,era um espectáculo - uma verdadeira besta de insecto.Enorme de asas,gorda,cor do petróleo,patas felpudas,celulite irreversível.Uma suculenta matrona.
Alguém afirmou ter-lhe visto uma cremalheira panorâmica de alvos
dentes aguçados.Na verdade não tinha lábios - exibia com mau gosto erótico uma beiça,tipo ventosa e cheirava a orçamento do estado.
Resultado - mobilização geral.
Em zig-zagues acrobáticos sobre as nossas cabeças,bufava,zunia,
zumbia zumzuns,riscava o espaço com uma baba fluorescente.Quase
política de direita,esfregava tímida as patas dianteiras e discursava arrogante sem aplausos nem substância,ao seu jeito - fluente palha
e em falsete.
Onde poisava deixava marcas,ameaças,impropérios,prepotências
e algumas rezas.Mostrava de quando em vez os olhos fulvos em desafio à lua cheia.A espaços tremulava as asas que pareciam bracinhos,como se fosse uma libelinha.Queria não parecer uma mosca varejeira.
Conclusão - na ausência de uma política coordenada e eficaz para a segurança dos cidadãos - voluntários - movemos-lhe caça cerrada,
meticulosa,com estratégia e tácticas cientificamente aceites na comunidade europeia.Utilizámos códigos em surdina,transmissões
gestuais - armas em riste.
Para a família a questão era tribal e honorária.Fervia-nos o sangue
nas coronárias e houve mesmo alguém que gritou - abaixo a mosca,
viva a liberdade.
Enfim - até o doce de tomate ,caseiro,que demorou à nossa avó seis
horas a cozinhar em lume brando,colher de pau em tacho de barro -
tomates sem pele nem graínhas,ao som da música - até o doce de tomate,cozinhado como quem vai a Fátima a pé lhe oferecemos de bandeja.
Demos-lhe poesia de Florbela Espanca,fizemos-lhe a mesa,demos-lhe
cama e roupa lavada.Estudámos em concílio improvisado o comportamento social dos insectos - chegámos mesmo a ler algumas
crónicas do Eduardo Prado Coelho - tentámos em pausas consensuais
alguns contactos políticos.
As incontronáveis férias são assim.As lojas do cidadão ficam desertas
ficam abertas apenas as maçónicas.O país encerra para transpirar e
até os políticos são considerados filhos de deus.
Entretanto a perversa mosca voejava na cozinha,mobilizava a família.Por vezes aparentemente brincalhona - saltitava nos ponteiros do relógio - escondia-se no buraco da fechadura da porta,nos buracos do queijo flamengo,nos póros da nossa imaginação.Formigava no pingo de suor que escorria lento,curto e grosso pela orelha da avó e em raides
fulminantes,tresmalhava,espreitava e sumia-se como o ar em movimento.
Na sala ao lado - a rádio anunciava mais um ataque à função pública
e a verejeira,espartana mas exausta,finalmente poisava e sorvia no doce de tomate - o seu último desejo.Uma rendição.
A família em bloco,felicíssima - caíu-lhe em cima.Foi mesmo comovente ver toda a tribo unida em torno de uma questão concreta.
Reunidos entendemos não matar a varejeira como se mata uma qualquer mosca.Partimos todos em procissão e fomos depositá-la,
com o doce de tomate irrepetível,junto de um magnifico cipreste.
Regressámos - em silêncio.A lua ainda estava cheia.O Voo do Moscardo - oferecia-nos os últimos acordes.
15 comentários:
Entrei... Li... E fiquei deliciada com mais uma crónica!
Soberbo!
Bom fim de semana
Bej da
Maria
um belo texto que nos mostra a nossa realidade...
gostei muito
bjs
Delícia,delícia, delícia.
Vou arranjar montes de potes de doce de tomate... vou vou... se assim puder capturar a varejeira...
A tua crónica está fabulosamente irónica, toca em tudo, que é preciso.
Perfeito.
Voilá, mon ami, mon chapeau.!!
Beijo.
Excelente...
Gostei e voltarei!
beijinho e bom fim de semana
Magnifico. Acho que vou ficar com o zumbido no ouvido...
Palavras para quê ?
Só me resta pedir mais e mais, porque talento e inspiração não faltam.
Um abraço,
Celino
Este texto mostra-nos como o verdadeiro talento consegue transfosmar algo que incomoda em material poético.
Há romeiros e romeiros!
Excelente caminhada esta que delicia quem entra nela por instantes e respira em uníssono com e do autor!
Princesa
amén. paz à sua alma!...
épicas estas noites de verão pequeno-burguesas!...
abraço
Eufrázio
Prender a atenção de alguêm numa caça à mosca
só pode ser sinónimo de grande poder de criação...
um abraço
Se existe insecto que me incomoda é a mosca varejeira... estremeço só de pensar...
A mosca, eu sei que faz falta ao equilibrio da Natureza...
Mas as moscas que conheço de outras nojentas varejices... para que servem?
Junto mais um pedacinho à minha pessoa...recolhido neste mundo virtual
Atrai-me a pessoa que prevejo desse lado...Dás-me licença de entrar nesta tua tribo?
Aquele abraço de peito aberto
BIA
O voo do moscardo ..... ouvi essa peça tocada ao piano há uns largos anos atrás... não sabia que havia mãos com 20 dedos..
sinfónico...
o voo das tuas palavras!!!
requiem to her...!
beijO :)
Que pena a inspiração ser tão sincopada. Ou será falta de tempo? Boas caminhadas, então, e não se esqueça de ir dando conta das paragens.
Li... Reli... Trireli...
Mais um pouco, e sei de cor!...
Se o teu mar é arável? Certamente!... Preparado para que nele caia a semente...
Cá estou a deixar-me embalar, no mar calmo(arável) de ondinha brejeira...
Aquele abraço de peito aberto
BIA
delicioso.
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