terça-feira, 9 de agosto de 2016

A SENHORA DA LIMPEZA





Antes de chegar às galerias, identificaram-me com um sorriso. 
Subi no magnífico elevador, conduzido por um delicado polícia. 
Sentei-me nas galerias e olhei para baixo.
Lá estavam os representantes da nação. Os eleitos da república. A palavras cruzadas, as ideias esgrimidas, as bandeiras nas lapelas, os passos perdidos. As palavras os gestos os silêncios. Os crentes e os farsantes. Desiguais. 
Inocente,segredei a um jovem cabisbaixo, companheiro de galeria: 
- " coisa linda esta democracia" 
Lá em baixo também estavam os meus, pouco numerosos  ainda mas a combaterem pelas minorias que vivem nos subúrbios de tudo. 
Lá em baixo quase todos esquecidos de subir os olhos para as galerias, tricotavam a verve, gesticulavam poses de verniz. 
De quando em vez disparavam blasfémias, partilhavam impropérios para mais tarde se abraçarem à hora do repasto. 
Inocente o jovem cabisbaixo segredou-me: 
- "comigo um dia isto será diferente" 
Terminada a sessão plenária os deputados saíram como estava previsto. O amplo salão ficou vazio, soberbo e solene.
O salão ficou a registar memórias e eu deixei-me ficar até ser convidado a sair pelo mesmo delicado polícia.
Como foi o último plenário antes das férias de Verão, resolvi festejar em silêncio. 
Procurei um restaurante no belo bairro de São Bento e sentei-me à mesa. 
Pedi o prato do dia. 
Serviram-me um discurso de Passos Coelho. Rastejante. Intragável. 
Fechei os olhos, abri os olhos e pedi o livro de reclamações. 
Levantei-me da mesa sem pagar. Os empregados  ficaram a ler o meu protesto. 
Lá fora ainda ouvi alguns aplausos mas fiquei na dúvida quanto aos seus votos. 
Dei uma volta ao quarteirão e na passagem ainda olhei para o magnífico edifício. 
Para meu espanto a porta rangeu. 
Começou a abrir-se lentamente. 
Era a senhora da limpeza. 

Eufrázio Filipe

Publicado (reconstruído) no "CAÇADOR DE RELÂMPAGOS " 2010 "ÂNCORA EDITORA

15 comentários:

Tétisq disse...

estranho que não se tenha cruzado com alguns fantasmas
:)

Majo Dutra disse...

~~~
Se a senhora da limpeza pudesse limpar toda a sujeira do palácio...
Bj ~~~~~~~~~~

Marta Vinhais disse...

A senhora da limpeza, uma pessoa coerente e discreta no meio de fantasmas e de incoerentes...

Interessante...

Beijos e abraços
Marta

Arco-Íris de Frida disse...

Ela... a senhora da limpeza... a mais digna entre todos?

Graça Alves disse...

Adorei o texto, tanto a nível técnico...muito bem escrito...como pelo tom irónico, sarcástico, mordaz!
Parabéns!
bj

Suzete Brainer disse...

A senhora da limpeza com a dignidade do povo
a limpar a sujeira dos políticos!...
Excelente narrativa!

Grata pela sua gentil visita e comentário
no meu blog.

Obtuso disse...

cada palavra um tiro
certeiro

Abraço

Emília Pinto disse...

Sentamo-no à mesa, servem-nos o que bem entendem e depois, o remédio é pagar. É assim a vida de todos nós tendo de engolir os discirsos balofos dos nossos politicos e no fim tentar da forma que pudermos limpar a sujeira que deixam por onde passam . Não é só a mulher da limpeza... nós também. Interessante, amigo! Fica bem. Um beijinho
Emilia

© Piedade Araújo Sol (Pity) disse...

e discreta e enigmática "senhora da limpeza".
gostei!
original, muito.
beijo
:)

Unknown disse...

Interessante e oportuno o fecho, com a senhora da limpeza ;)

abç amg

Manuel Veiga disse...

diligente a "senhora da limpeza"
não perde uma oportunidade em mostrar serviço
por este andar ainda chega a deputada

da maioria, claro.

abraço

Janita disse...

No fim de cada plenário há sempre necessidade que haja alguém para fazer o trabalho sujo: limpar a porcaria que todos fizeram!!

O meu amigo não gostou, pagou, mas...bufou!
Tomem lá que é democrático!!

Beijinhos e boa continuação.

Odete Ferreira disse...

Apreciei a mordacidade da "crónica"...
(Só uma senhora da limpeza?)
:)

Ailime disse...

Olá boa noite,
Um texto magnífico sobre o que se passa na Assembleia. Dose de Coelho ao almoço indegesto e tóxico.
A senhora da limpeza, providencial...
Bjs

Agostinho disse...

O que a Senhora da Limpeza tem de aturar!
Essa do livro de reclamações está muito bem lembrada. Pena é o pobo, sem saber ler nem escrever, persistir em pastelões de coelho.