segunda-feira, 5 de maio de 2014

A DUNA SOU EU




                                                          " Caçador de relâmpagos " (2010)


Enquanto aquele anjo permanecer nas areias, bem pode o vento soprar.

-  o cão ou o velho?

Lentos , trôpegos, com os pés a tracejarem os caminhos de sempre, todos os dias aquelas almas percorriam memórias.

O cão - mais velho que o dono - era o guia, a sua bengala de cego.
Pela orla da praia, desde a gruta onde viviam até à colossal duna, abrupta sobre as águas, as aves marinhas mergulhavam a pique , esbracejavam só para os salpicar. Lá iam, serenos, livres, sem palavras - imensos.
No ar, o sussurro dos silêncios embalava-lhes os passos num concerto de maresias.
Chegados ao topo da montanha era sempre assim - o velho afagava as orelhas do cão e o cão lambia-lhe as mãos.
Sentados - respiravam infinitos - o perfume das algas - adormeciam no tempo.

Ao longe, muito ao longe, alguém de um barco bramou :
- fuja, a duna vai desmoronar-se.

Imperturbável, respondeu baixinho para não acordar o cão :

- A duna sou eu.



 

30 comentários:

Rogério G.V. Pereira disse...

Mil vezes leio
e de cada vez
te vejo
com maior nitidez

Sim,
a duna somos nós
cegos
mesmo com os avisos de ti
poeta

deep disse...

Muito bonito. Lembra Torga, apesar do mar. :)

Dilmar Gomes disse...

Linda cronica poética. Linda mesmo!
Um abraço daqui do sul do Brasil.

anamar disse...

Muito belo.
Abracinho :)

Lídia Borges disse...


A erosão "inevitável" que não nos contém.
Firmes e inabaláveis cumplicidades entre um velho e um cão no limiar do tempo, onde nenhum vento faz chegar boas marés.

Um beijo

ana disse...

Belíssimo texto poético.
Do melhor que tenho lido.
Parabéns!:))

jrd disse...

Sim, a duna era ele. E ficou de pé como sabe ficar quem é!
A poesia da prosa.
Abraço Irmão

Agostinho disse...

"A duna sou eu"!
Milhões de grãos de areia à espera que as correntes da maré os desagregue?

Muito bom, Mar.

Rosa dos Ventos disse...

Belo e comovente texto poético!
Seremos dunas até aguentarmos!

Abraço

vida entre margens disse...

Um texto, que para além de poético é repleto de substância...
Muito bom!

Abraço!

Manuel Veiga disse...

as marés passam - as dunas permanecem!...

gloriosos os cães - a lamber as feridas!

abraço, Poema.

Odete Ferreira disse...

Li em crescendo prazer literário. Prende, o processo narrativo, desconcertando o leitor por uma introdução e final que podem ser afinal a síntese da mensagem.
Afinal as dunas não são imutáveis...
Bjo, Mar :)

a noite (ser) disse...

Belíssimo texto! Adorei - passei e vou ficar.

Olívia Santos

Cadinho RoCo disse...

Desmoronado fiquei eu com palavras tão envolventes.
Cadinho RoCo

Armando Sena disse...

Não há vento que desmorone o mais nobre dos sentimentos: a lealdade.
Enorme texto.

Vénus S. disse...

Que bonito! Para o velho e para o cão o tempo não passava porque se tinham um ao outro. E a duna era a vida que segurava os dois. :)

DIOGO_MAR disse...

A vontade e determinação acérrima, que distingue os grandes homens!
.A morrer que seja de pé!

Gostei muito!

http://diogo-mar.blogspot.com/

Graça Pereira disse...

Ainda bem que há dunas por aqui...onde os poemas se encaixam e o vento não os leva...
Prazer em ler um texto tão bem escrito e com um conteúdo belo, cheio de significado.
Graça

Janita disse...

Um texto que me perturbou imenso.

Duas vidas, um só destino. Quando pertencemos ao local que o nosso coração escolheu, não fugimos com a derrocada iminente. Ficamos até ao fim, imperturbáveis e serenos, decididos a desmoronar se for esse o fim destinado, mas sem abandonar aquilo que temos entranhado na carne e faz parte de nós.
Quanta beleza! Gostei muito.
Obrigada, Mar!

Um beijo.

Existe Sempre Um Lugar disse...

Bom dia,
A duna somos nós, crescemos ou diminuímos consoante o aproveitamento do vento.
Abraço
ag

http://momentosagomes-ag.blogspot.pt/

By Me disse...

Belíssimo e magistral !

As dunas são perigosas... mas o anjo lá está até ao dia.... por isso o velho continua descansado naquele paraíso de afetos.Enquanto a voz o alerta ele sonha!

Ana Tapadas disse...

Texto poético de rara beleza, metáfora da humanidade que somos...
Pobre da sociedade que despreza os seus velhos.

Beijo

irene alves disse...

A duna sendo nós...nós estamos
(alguns)muito inamovíveis...
Um bj.
Irene Alves

Teresa Alves disse...

Assustador, pela natureza, mas não menos poético. Antes pelo contrário, de grande sensibilidade.


Bom fim de semana.

Graça Pires disse...

Uma beleza, este texto, amigo. Li e reli para interiorizar cada palavra em forma de duna...
Beijo.

Ailime disse...

Lindo! Duna forte como uma muralha! Bj Ailime

Arco-Íris de Frida disse...

As dunas somos nos... tao fortes dunas...

Suzete Brainer disse...

Simplesmente maravilhoso...

A impermanência da vida

acompanhada pelo selo da

amizade, desenhando

novos mundos a percorrer...

Gostei imenso!

Olinda Melo disse...


Lentos e trôpegos, silenciosos, palmilhando o caminho há muito traçado, desde a noite dos tempos.
Comunhão com a natureza. Rijos como só eles: o velho e o cão, este também gente, porque tal como o velho também tem alma.

Abraço

Olinda

George Sand disse...

Somos sempre a duna. E o movimento, da duna.
E o tempo e, o vento, que levamos a percorrer-nos.