Por tempo indeterminado, em chama, sem perder o sentido do voo, mais leves que as cinzas descobrimos um acesso - e foi por aí que rasgámos fronteiras, o teu corpo de pátria amovível. Nós sabíamos que não basta ter razão para voar, construir sonhos com paus de fósforo - mas também sabíamos que por uma nesga de sol alumiávamos espaços desconhecidos, arestas de vento. Foi por aí que navegámos por sobre as pedras contra o culto das personalidades, para evitar a profanação das metáforas. Nós sabíamos despertar luas-cheias, vivificar os olhos dos peixes, tocar sinos a rebate e dar gritos na boca das sementes.
Alguém nos perguntou - a floresta, a árvore ou o galho? - e nós respondemos - a vida inteira.
Foi assim a pelejar contra Alísios e Adamastores que exultámos a Taprobana. É verdade. Com águas nem sempres de feição, correntes de ar a invadirem portas e janelas até aos porões - o nosso mais íntimo da pele - sem nunca permitirmosa falta de um bago de romã no mastro mais alto da vida. Foi assim andarilhos que discernimos as gáveas na rota das aves.
Quando pensámos ter chegado - limitei-me a olhar os teus olhos no espelho. E já foi tanto.
Contra natura pajem ainda sem idade para ter espada, despida de névoas, derramou-se a romãzeira - num chão de águas para cumprir sementeiras - mas foi na fímbria do mar que te vi sedutora. As margens não sei de quê soluçavam-te os olhos mas ainda havia espaço no bairro para cantar. Os barcos ao vento tinham largado amarras e eu disse benditos os palcos silvestres onde se representa a vida no avesso, com pássaros a céu aberto. Quando te vi assim despida de névoas, nem proprietária nem propriedade, recordei por instantes o Dique na Taprobana que me disse - não quero ser cão de barro como me encontraste à beira da estrada, na Volta da Pedra. Quando te vi assim despida de névoas, recordei o podador a decepar-te e a dizer-me - quer uma árvore de fruta ou só para dar sombra? Reconheço que à vista dos olhos, não é fácil desbravar caminhos nem palavras - a menos que sejam improváveis. Às armas, às armas meu amor.
A remoinhar desertos e tempestades, acordámos à vista da Taprobana que só existe por tão desejada. Na mítica Taprobana, lá para os lados de um chão de azuis e outros céus estava tudo no seu lugar. A fragância inebriante das algas nas narinas do vento, o bolor à superfície, os retratos nas paredes da casa - fios de música pendurados nas árvores de fruto para adocicar os melros, a partilha do pó pelos melhores objectos, a biblioteca perfilada nas memórias, ténues sinais, utopias que alimentam o pomar onde plantamos sonhos em voz alta. Na mítica Taprobana não vi cegos de concertina nas esquinas , amanhãs violados por uma côdea, nem procissões. Estava tudo no seu lugar. Até as palavras nómadas, reconstruídas a céu aberto, bosques vertebrados, espaços encantatórios, multidões em andamento para concertos de violino e piano, santuários de pássaros, relâmpagos às mãos-cheias a dardejar no cais. A nossa romã. Na verdade a Taprobana talvez exista se continuarmos a desbravar caminhos improváveis. Atento militante da vida - o Dique, pela primeira vez, ladrou. Pousei a caneta, rasguei a folha de papel. Olhei-o nos olhos e disse-lhe com ternura - a partir de hoje és um cão.
Sem pátria conhecida nem fronteiras, aparentemente livres, migrantes até onde os olhos alcançam, sempre residimos nos apeadeiros da vida, a despontar do caos, silvestres conforme as estações e a noção do voo. Foi assim que acordei a fazer versos ou quase nada, neste chão de rastos onde os sonhos sonhados se levantam nos mastros mais altos e a indignação é um acto de sabedoria contra a indiferença. Foi assim que acordei. Perguntei ao Dique - o meu velho cão de barro - se estava disponível para uma viagem - e ele disse que sim. Peguei na caneta e numa folha de papel. Levei-o comigo. Fiz-me ao mar à caça de relâmpagos. Partimos para lá da Taprobana contra o silêncio dos que vegetam destinos conhecidos, a carregar andores, a soletrar pelos dedos, a cantarolar em redor dos coretos. Seguimos o trilho dos ventos, contra a corrente, rumo ao início dos sonhos. Lá estavas - mais vermelha que os teus lábios.
A desoras ouvia Quiet Nights quando um barco de papel escrito à mão aconteceu para acordar os pássaros. Com Dianna Krall ousei invadir espaços proibidos nesta ilha escarpada. A chuva caía na boca dos amantes. Foi assim. Não previ o tempo livre nos ponteiros parados do relógio e saí. Chovia a cântaros. O caminho em terra lavrada não tinha poros suficientes. Faltavam os belos relâmpagos mas o vento assobiava coisas lindas. Foi assim encantado que atravessei o dilúvio contra a corrente. Na verdade - mais importante que as pontes são os rios indomáveis. Só não previ a berma do aceiro numa curva submersa e ali fiquei, no fim do mundo, à porta da casa. Abri a janela do carro e observei um rio colossal a correr à pergunta de uma saída para o mar. Ali fiquei encantado uma vida quase inteira, até entrar no café do senhor Abílio, onde todos falavam da tempestade e das colheitas dizimadas. A chuva parou. Fez-se silêncio. Um homem a esbracejar subiu para o tampo de uma mesa. Pediu a palavra e chorou o tempo que faz. Os cães ladraram para os céus quando lhes disse que estava de regresso à escarpa. Uivaram como de costume as suas rezas. Quando cheguei - o vento arredondava arestas na memória das pedras - e eu só tinha que fazer o que fiz. Perguntei à romãzeira - que hei-de fazer senão amar-te ?