Já a idade das sombras era massacre quando o arquipélago se precipitou nas águas. Só os cavalos salgados de ventos e marés percorriam caminhos alados. Palavras infinitas na boca dos naufragos.
As ilhas já quase não se falavam. O país estava sequestrado nas mãos de um punhado de abutres que entenderam convocar uma assembleia para decidir a vida ou a morte do arquipélago.
Estávamos no Outono. Só as folhas caíam mas estupidamente fazia sol no chão das romãzeiras.
Nas águas uma frota de barcos brunidos desembarcava a nata da nação na ilha mais inacessível aos naufragos.
No mais profundo silêncio fardadas diligentes meninas esculturais gingavam-se de avental com rosas embutidas - ofereciam-se em bandejas de frutas tropicais e cálices de vinhos generosos - à canalha.
De quando em vez em parelhas sorriam venenos para um fotógrafo de família e por ali ficaram pela vida fora em conversas de palha até ao pôr-do-sol.
Ao tocar a campaínha todas as sombras entraram no auditório. Uma generosa sala de lustres com palco ajardinado ao fundo onde magestoso o chefe com os seus sub-chefes aguardavam o momento solene. Nas suas costas pendiam sonâmbulas e sofridas as bandeiras de cada ilha.
Com uma hora de atraso a magna reunião dos donos do arquipélago estava para se iniciar à porta fechada quando um cretino solicitou à mesa para se ausentar por cinco minutos.
Tolerante o chefe máximo do pessoal menor concedeu os cinco minutos.
O cretino levantou-se. Tentou acender a luz da casa de banho. Nada. Acendeu o isqueiro para localizar o urinol. Nada. Aflito urinou no lavatório mas antes já tinha mijado nas calças e foi assim que cumpriu os cinco minutos.
A reunião nacional começou com a solicitação de intervenções curtas para recuperar o tempo perdido uma vez que a ordem de trabalho tinha sido préviamente distribuída.
- Há inscrições?
De novo o cretino se levantou ergueu o braço direito para exalar o perfume preferido no seu sovaco. A esmeralda do seu botão de punho - e foi assim tartufo que solicitou à mesa ;
- Proponho que tudo seja aprovado por aclamação.
Após a anuência do chefe a evolução na continuídade estava aprovada com uma saraivada de palmas que só foi interrompida pela doce e profunda voz de uma sereia autêntica - que trespassando as paredes do auditório - proclamou:
- Estais condenados. Estas ilhas estão rodeadas de sonhos.
40 comentários:
Enquanto alguns
em ambientes faustosos
exibem os seus sinais
de riqueza
"abutres"
saciados
com tantas presas
sobrevoam o arquipélago
"A sereia" condenou
mas amanhã
ou ainda hoje
todos são postos
em liberdade
E o povo
esse
continua a sustentar
as suas futilidades
e mordomias...
princesa
Bom dia Mar
Não é fácil decifrar-te.
A tua escrita é como um trabalho que tem que se levar para casa e estudar. Foi o que fiz ontem.
É fascinante, a tua prosa.
Beijo.
Belo texto, se eu percebo alguma coisa de palavras!
Já tinha saudades de passear por aqui!
:))))
Estes homens guardam a porta estreita do paraíso para eles e lançam umas achas para a fogueira do nosso inferno.
(quantos arquipélagos, repúblicas, republiquetas vivem em seu cotidiano, a narrativa aqui por ti construída? ainda bem que não nos proibem de termos quimeras, ainda bem que não invadem nossos cérebros e aprisionam nossos sonhos... ainda bem!)
Indissociável, estimado amigo, o homem político do homem "escrevente": nós somos o somatório de tudo quanto vivemos - aqui e ali - , e ainda bem. Alguns, Eufrázio, como o senhor, seja qual for o vento dominante, sabem ouvir a voz afónica das sereias e dar-lhe, pela sua voz, espaço a que sejam, hoje e sempre, ilhas rodeadas de sonhos... e tanto é!
Bem-haja pela partilha
Permita-me um beijo fraterno
Mel
PS: Quando for grande quero escrever assim, juro! Que inveja.... ehhh...
E os sonhos hão-de acabar com os mijões da unanimidade e aclamação e com os do sim porque é preciso.
Abraço
um poema diferente que aborda temas que podemos entender de várias maneiras, e só por isso é um trabalho que exige reflexão para quem lê.
e "As ilhas já quase não se falavam"
que poético! para fechar com chave de ouro, cito:
estas ilhas estão rodeadas de sonhos.
parabéns e um beij
Excelente!
Tristes, os que se deixam seduzir pelo canto das falsas sereias.
Depois de uma aflição tão bem contada, um gran finale.
Que haja sol no chão das româzeiras.
Abraço, Amigo.
Aqui está mais um belo exemplo do que lhe quis mostrar com a "medalha" que atribuí: texto para saborear lenta e repetidamente, como os poetas "fazem" com as sereias!
Estranho este seu texto, algo gelado...
Será que está na ilha certa?
Abraço!
Continuo a acreditar no canto proclamado das sereias, que mantêm vivos os sonhos apesar da sede dos abutres.
Excepcional esta sua arte!
Um beijinho
Estimada ANA
Estou numa ilha
rodeada de sonhos
e já é tanto
Caro Mar Arável,
Fico feliz por estar na ilha dos sonhos.
Os abutres toldaram o meu pensamento!
E que o tanto seja tanto.:)
A porra toda é que os sonhadores demoram a acordar - e, consequentemente, os sonhos não passam disso mesmo.
Depois, depende do que cada um sonha. Há quem sonhasse uma coisa, mas apanhou-se a dormir num travesseiro de seda, vitalício, e lá foi o sonho
Talvez a sereia devessa tirar o rabinho do molho, não sei...
É que os tubarões (os de ontem e os de hoje) continuam a devorar tudo o que podem.
Monte Cristo
Sabes que acordamos a horas diferentes de modos diferentes
e até sabes dos que sonham eterna mente como tu a fingir que dormes
nas palavras
Gostava de continuar a acreditar nas sereias... a culpa nem é delas, é mais nossa, mas a verdade é que muitos dos sonhos estão a afogar-se...
Um abraço.
Nilson
Aqui neste mar ninguém acredita em sereias
mas o sonho comanda a vida
Tão fascinante a sua prosa como a sua poesia. Eu acredito nos sonhos e este texto me faz lembrar um teatrinho infantil que vi há muitoa anos com os filhos e era a história de um reino onde era proibido sonhar, até que apareceram os primeiros artistas a contrariar as normas e os sonhos nasceram e a pouco e pouco todas as luzes se acenderam e todos os sonhos desarmaram o rei.
Parabéns e um aplauso.
Beijos
Branca
Hummm... pergunto-me onde diacho será este arquipélago... onde porcos aflitos aplaudem as aclamações... onde eunucos a mijarem-se pelas pernas abaixo não matam os tiranos, pedem mais.
Abraço.
Gostei.
Poeta
Um canto para ouvir em silêncio e reflectir.
beijo
Sonhadora
O sonho dum espaço sem tempo... uma ilha rodeada (e recheada) de sonhos...
Bjs
Chris
Uma metáfora cruel e lúcida do que se passa por aqui... Resta-nos o sonho...
Umn beijo.
"Estais condenados. Estas ilhas estão rodeadas de sonhos. "
Do pesadelo , por vezes, nasce o sonho e vice-versa...
Abraço
Paulo
PS: obrigado pela visita.
Espero bem que a profecia da sereia se cumpra !!
Um abraço amigo meu
muito bom!
parabens.
admirável sarcasmo! catártico - como uma boa gargalhada.
não deixemos que o odor pestilento contamine os sonhos...
abraços, meu caro Poeta
Hoje não comento
Estou rodeado de sonhos
e não sou uma ilha...
Acredito que se deva sonhar, senão nem fazia sentido viver, mas neste caso específico, diria que o buraco é tão grande que o mais provável é a ponta da península se partir aos bocadinhos e Portugal virar um Arquipélago... tudo por culpa dos abutres ;)
Bjos
Meu amigo:
A tua prosa é cheia de poesia, de sonhos mágicos, como poderia eu não gostar destes teus lindos sonhos.
Uma condenação mais que justa! ;-)
Beijinhos
Ás vezes é preciso uma sereia para escrever uma melodia sobre o caos da atonalidade...
Abraço
Salvem os sonhos...
Beijinho*
Resta-nos os sonhos!!
Achei o seu texto muito interessante.
bjs
É uma réplica eloquente da espuma d(estes)os dias, mas com a delicadeza e suavidade da prosa que caracerizam este mar, por isso mesmo, sempre arável.
Convido-te a passares lá por casa. To agradeço.
SErena noite.
Eufrázio,
basta-me o fim, o fim dita o futuro:
"- Estais condenados. Estas ilhas estão rodeadas de sonhos."
:) Um abraço
O que é uma ilha sem sonhos?
Não vale a pena perguntar à canalha, porque não passam de uns meros canalhas!
Forte as suas palavras!
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