segunda-feira, 27 de agosto de 2007

UMA PEDRA NO CHARCO

desenho de Mário Filipe




A Graciosa não era açoreana.Começou por ser um pinto ternamente oferecido por uma amiga.Talvez por isso desde os primeiros pius tivesse

sido criada como família.

Solenemente batizada com um mergulho na água do poço,cresceu e fez-se gente.Era uma galinha imponente.

Gostávamos tanto da Graciosa,da sua plumagem - sobretudo do seu

comportamento irreverente mas doce,do modo como pestanejava

os olhos amendoados e sacudia as asas.Era de facto a princesa do galinheiro.Ligeiramente anafada,solteirona,farto peito,pernas

consistentes,rabo de mulata cubana,simpática,trunfa esbelta e andar

sedutor.


Apesar de modelo ímpar - a Graciosa não punha ovos e todos

atribuiamos o facto não à Graciosa mas ao galo.

Na verdade o galo não cumpria um pormenor fundamental -

faltava-lhe quando cantava - as duas últimas notas musicais para

o concerto estar conforme a pauta.


Resultado - um dia decidimos substituir o galo por um tenor

e a vida pareceu dar-nos razão.


A Graciosa - princesa indigitada,começou a pôr ovos,como todas as outras - mas com duas gemas - isto é,mantinha a diferença.

Não cacarejava,falava com os olhos amendoados,fazia garatujas

com o bico nas paredes do galinheiro.Com a simplicidade e a sabedoria

dos iluminados começou a isolar-se - de tal modo que um dia foi galada

pelo tenor.Perturbada mudou de personalidade.Inesperadamente.

Admitimos que tão profunda mudança tenha a ver com o facto de ser virgem fora do tempo.

Certo é que se considerou violada e passou a ser arrogante,dissidente

e politicamente liberal.

Sentimo-nos traídos.

A princesa estava pedante e tresmalhada.Se fosse gente fumaria

"cohibas" não humedecidos,frequentaria nos casinos as salas de jogo,

tornar-se-ia meretriz e regaria a clientela com espumante barato.


Já não era uma metáfora era uma hipérbole.


Refletindo - concluimos que a Graciosa,de tão protegidadesde pinto

se tornou num Acácio com penas,num conde de Abranhos,num tartufo,

uma marioneta da cirurgia plástica.


Perante os factos decidimos - vamos comer a Graciosa.


Após alguns dias de preparos,convites e paramentos - o momento

politicamente organizado e religiosamente celebrado - estava na mesa

e na púcara.

Preparados para atacar o evento gastronómico eis que um pássaro

que nos pareceu ser exótico mas era tão só um residente pardal -

cagou no centro da mesa,precisamente na terrina da canja.


O Mário começou a desenhar a cena e a Maria João,antes das primeiras garfadas disse


Pai - parece que vamos comer a família.



Olhámo-nos nos olhos uns dos outros

e largámos os talheres.





14 comentários:

Mateso disse...

Simplesmente divinal como fora a canja , não fora o acaso pregar a partida. A Graciosa , que bela personificação... Há por aí, muita franga ou galinha que adoraria ter as caracteríisticas desta Graciosa,ora..o nome...
Será que o tenor não era de primeira água, mas antes um segundo, daí a revolta ,e até digamos, a falta de vibratto...
Bj.

CCF disse...

São um espanto estas (tuas) histórias de animais e o modo como a relação se estabelece com os humanos, uma coisa pouco habitual na escrita hoje.
~CC~

Maria disse...

Outra coisa não se esperava... comer a família?
heheheheheh
Gostei da Graciosa, carácter forte...

Um abraço

Anónimo disse...

G'anda pinta!
Mas, desculpem lá, para que era preciso o sacana do pardal?
E uma curiosidade: a Graciosa veio da Terceira ou apanharam-na na Horta?

Maçã de Junho disse...

Deliciosa história! Nunca a história de uma simples galinha foi tão mimada!


beijos
M

CCF disse...

Estas tuas histórias com bichos são fantásticas em forma e conteúdo!
~CC~

un dress disse...

...capoeiras e passaradas...

de penas humanas...:)





beijO*

António Miguel Miranda disse...

Divulgação

Mais um Blog que se tornou um Livro!

Filme da apresentação disponível no YouTube em “Camarada Choco”

www.camaradachoco.blogspot.com
www.livrosnet.com

Manuel Veiga disse...

problema é que a Graciosa continua a cacarejar por aí. já não como metáfora. mas como hipérbole.

quanto a família, só come quem quer!

jrd disse...

Nunca é demais repetir que, também, Jean de La Fontaine se servia dos animais para instruir os homens.

samuel disse...

Magnífica história!
Isto bem conversado dava uma cantiga...

CNS disse...

Que tenra e deliciosa esta história da Graciosa! Sorve-se de um trago. E conforta pela escrita.

Luís Galego disse...

a vingança serve-se fria, de facto e pelos vistos de direito. Aqui a vingança teve contornos à laia de Miss Marple.

Fantástico....

Alexandre disse...

No tempo em que todas as galinhas tinham nome também tive uma Milú (anos 60, a artista Milú cantava na rádio, quando a rádio passava música portuguesa), que até de carro chegava a andar e comia na gaiola do periquito - não me lembro o que aconteceu mas o crescimento dos mais miúdos deve ter permitido que lhe fizessem uma atrocidade! A Milú teve a «sorte» de partir uma pata na porta da capoeira e foi tratada como uma princesinha no tempo em que recuperou. Espero que a sua alma - porque a terá tido decerto - descanse em paz!!!