desenho de Mário Filipe
Lenta como o amor dos bons amantes,a madrugada despontava
quando me fiz ao caminho do Alentejo.
O céu intangível,aparentemente igual para todos,mostrava-se naquele dia - plano- longínquo,viçoso de arco íris.O sol gatinhava resplandecente por entre farrapos de nuvens frágeis,desmaiava adolescente num chão com cheiro a ervas e pássaros silvestres,numa terra de perder os olhos e a vista.
Nestas paragens,é possível ainda hoje escutar - com vagares e
lucidez - todos os sítios do silêncio,a limpidez dos sons povoados de montes e ribeiros,o timbre do voo por sobre a ondulação das searas-
-amar a sombra das azinheiras,o pó finíssimo das azinhagas,tingir a
boca com mãos cheias de amoras.Nestas paragens é possível ler
pelas janelas das casas,os olhos das pessoas.
Amo o Alentejo - até os seus defeitos.
Naquele dia estava tudo acordado,com o meu amigo Pêra Verde -
um velho ganhão ,estatura meã,entroncado,ventre generoso,rosto
vermelhão,boné às riscas com pala sobre os olhos e polegar da mão
esquerda espetada no cinto das calças de ganga - um homem simples
sábio - um coração de oiro.
Chegado à aldeia de São Mansos,onde o povo - por fé - não frequentava as missas do senhor prior,procurei a Junta de Freguesia.Em frente - monumental e paciente ali estava ela - a Mimosa.
A Mimosa,uma burra que o meu amigo destinou para me transportar,por azinhagas sem fim,até ao local do encontro.Um belo
animal.Filha de família residente,propriedade do Pêra Verde,conhecia o caminho tão bem como as suas patas.
Passei-lhe as mãos no pêlo castanho clarinho,escovado,impecável.Bonita burra.Uma risca branca,
evidente- bordava-lhe os flancos.Uma princesa.Pestanas fartas e eriçadas,uma madeixa na nuca por entre as orelhas espetadas,
olhos gulosos,ternos,meigos,infinitos.
Ao primeiro contacto mais formal e objetivo enrolou as lindas beiças,mostrou a alva cremalheira com dentes certinhos e palitados
Deslumbrado contei-lhe um segredo ao ouvido e ela deixou.
Disse-lhe que íamos comemorar o 25 de Abril.
Democrática e compreensiva - evacuou com satisfação como é da sua natureza e eu dei-lhe favas,que ruminou em festa,ensalivando com
prazer.
Assim identificados,montei-me - e partimos,amigoscompanheiros
e camaradas.
Olhei de novo o céu e pareceu-me de facto que até no Alentejo,
só aparentemente o céu era igual para todos.Concluí em pensamento,para não perturbar a Mimosa - meu deus,como não é fácil ser alentejano no Alentejo.Mesmo assim parece que ouvi a Mimosa -
nem na terra nem no céu.
De quando em vez a Mimosa troteava - mas quando decidia andar a passo,bamboleando as ancas,talvez os quadris - baloiçava-me.Só
faltava contar-me histórias de embalar.Assim fomos caminho fora e de tal modo que não resisti a esticar-me completamente por sobre o seu
pescoço.
A Mimosa - por gentileza,prazer ou consentimento,pareceu-me ter
gostado.Na verdade constatei que começou de novo a festejar.
O meu amigo Pêra Verde já me tinha esclarecido -
--Compadre - a burra é mais inteligente que uma cadela de raça.
No pó finíssimo da azinhaga lá fomos andando.Para estímulo,umas
vezes esfregava-lhe a madeixa,outras falava-lhe ao sentimento - Não
fosse o povo com militares subalternos,não fossem os democratas
em luta durante décadas,não tinhamos liberdade.Sabes Mimosa,o
desmantelamento da essencia da revolução dos cravos merece respeito e uma reflexão dos que a viveram e dos que dela beneficiaram.
A Mimosa abanava as orelhas - com o rabo sacudia as moscas.
Porque não evacuou desisti da conversa.
Por fim chegámos ao monte.Estávamos na Malhada dos Porcos
Bem disposto o anfitrião recebia os amigos com abraços e vivas ao 25 de Abril.Uma pequenina bandeira nacional flutuava no suporte de uma das orelhas do Pêra Verde.
Compadre - a Mimosa portou-se bem?Costuma ser um belo colchão de molas.Nas tetas da mãe,já eu mamei.
No terreiro,o Farrusco,um valente pata negra,inocente,estava preparado para o sacrifício.
Após os preparos - Farrusco morto,musgado e amanhado - noite fora,em festa rija - a melhor carne alentejana foi comida.Molejas,cachola,azeitonas pretas,paão fresco,borba tinto e anedotas picantes.
O tempo passava ao rubro.No auge do convívio o anfitrião entendeu falar - a sério,com voz grossa,pausada.Ergueu-se como pôde e disse -
- O mal desta república é o desemprego e a falta de segurança das pessoas.Há dias fui assaltado.Roubaram-me um tarro,um mocho,um cocho,um avio de linguiças e morcelas.
O momento tornou-se solene e o dr Galandim,conhecido na terra por Zé Milhano esclareceu o plenário
- Queridos amigos nos tempos que correm todos somos doutores e engenheiros.Nesta república tornou-se corrente qualificar a criminalidade actual de complexa,transnacional,consistentemente
monotorizada,tecnologicamente avançada,socialmente insidiosa,
acrescidamente violenta,estruturalmente actuante,economicamente poderosa e politicamente verrinosa.
Após este desaforo do dr Galandim,Pêra Verde,para manter o nível do encontro clamou de novo pelo 25 de Abril,olhou de soslaio para
os restos do Farrusco e afirmou categórico,simples e sábio,
como estivesse no parlamento nacional
- Desgraçado do animal que passa pela goela dos outros.
Apoiado por todos começamos de novo a cantar - até ao romper da aurora.
4 comentários:
Uma forma diferente de comemorar Abril...
Gostei da Mimosa, gosto do Alentejo...
Uma narrativa, que desde o principio ao fim...deixou-me com os olhos marejados de lágrimas, da grande comoção que senti...ao ler frases, palavras, alcunhas...os cheiros e os sabores dessa Terra abençoada que foi o meu berço!
Ai Alentejo...Alentejo
Vou percorrrer-te de lés a lés
Terra que me viste nascer
Faculdade do meu saber
Como poderei esquer!
Obrigada...pelo texto!
Abraço
Maria
belo. bela escrita...
Excelente retrato do Alentejo e sua gente! Alentejo, terra que me viu nascer, terra que me viu crecer!
Terra onde o silêncio nos acorda e nos move!
Terra de cantares e bailados do melro, do rouxinol e da cotovia!
Terra que continua a conquistar corações, sensibilidades e paixões!
...
Felizes os que inalam o perfume das flores silvestres e partilham com o povo!
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