Sempre convidamos a nossa avó quando se prevê tempestade, de preferencia com relâmpagos e ventos fortes.
A nossa avó é uma jovem princesa, um cristal que ressoa marés e adora o tempo agreste.
Sempre desafiou sonhos impossíveis - mas com alguns conquistados, projecta-nos amanhãs.
A nossa avó sempre nos disse que não era perfeita por não acreditar em verdades absolutas. Acredita na poesia. Menos nos poetas, criaturas artesãs de palavras que almejam aproximar-se dos deuses para morrerem com eles, talvez mais infelizes.
A nossa avó nunca explicou esta aparente contradição - talvez por isso não tolere um convite para um dia de tempestade que não se cumpra com relâmpagos.
A previsão de intempérie para o fim-de-semana, afoitou-nos para um convite à nossa avó, que aceitou e foi recebida com todos os detalhes.
Ficámos felizes - nós e os cães.
Reunidos assistimos às horas que passavam. Desaguámos em conversas de família e memórias. Recitámos Eugénio de Andrade, Sophia de Mello Breyner, David Mourão Ferreira e José Gomes Ferreira.
Os cães junto à lareira abanavam o rabo e davam sinais de nervoso. Estávamos bem mas a tempestade tardava.
De súbito, lá fora, a chuva dava inicio a um concerto magnifico. Em crescendo. Precipitava-se com força. muita força. Torrencial. Com relâmpagos. Um dilúvio a ribombar.
- Abram as portas.
Abrigados no alpendre assistimos ao espectáculo. Coisa linda.
Os cães nem tossiam, e a nossa avó - em festa, com olhos gulosos e meigos, afagava os trovões.
Ainda mais felizes ficámos quando um relâmpago mais forte apagou todas as luzes da azinhaga e da casa. No escuro a tempestade vivificava a negritude. Purificáva-nos.
Mais tarde o tempo amainou. Recolhemo-nos. Acendemos velas e candeeiros a petróleo. Sentámo-nos à mesa.
- Reparem como após o magnifico concerto, também aqui são belas as imagens da sombra, os retratos nas paredes. Como se evidenciam os contornos dos objectos, a arquitetura dos sons. Como respiram os nossos rostos e tudo se movimenta. Simplesmente tudo se move ao ritmo dos afectos recriados pela luz das velas. Reparem como fruimos dos sons quando o silencio se cala para nos aproximarmos mais uns dos outros. Como tudo isto seria um paraíso se fosse uma opção e não uma circunstancia.
- Avó - agora também não temos alternativa e isso doi-me.
- Pois é, mas sabes que um qualquer desconhecido
está a trabalhar para resolver o teu maior desejo.
Os cães só abanavam o rabo quando a avó falava. Talvez por isso fizemos uma pausa breve até que uma voz grave mas pautada começou a interpretar um tema de jaze, precisamente quando regressou a luz eléctrica e nós de imediato soprámos as velas.
- Por favor. Ainda não terminei. Apaguem as luzes. Acendam as velas.
38 comentários:
lindo, lindo... eu estava lá! em caminha, com a minha avó e os restantes familiares. ouvi os trovões e maravilhei-me com os relâmpagos. a luz a cair no rio.
a correria dos gotejos pelos vidros. as clarabóias em chama de luz branca.
- por favor. ainda não acabei. não apaguem as velas que os fusíveis estão todos queimados.
obrigada por esta bela lembrança
um beijo
luísa
Escreves tão bem poesia como prosa...
Que belo fim de semana com a avó, recitando a Sophia, Eugénio, DMF e o Zé Gomes...
Um abraço
Quem me dera vir a ser assim como a avó descrita...um belo retalho, uma belissima inspiração, quase memória?
Obrigada, pelo gesto e pela visita, Eufrazio! :)
Lindo!
A minha avó tinha letra de renda e comia como um passarinho, fazia ovos escalfados e ensinou-me uma oração para a trovoada. Tinha cabelos de neve e olhos enevoados de tanta vida.
Obrigada por me teres feito lembrar dela com um sorriso de saudade.
Os avós são sempre lembranças do que há de melhor.
Não apagues a vela da tua escrita. Belíssimo.
De facto há luz a mais, ruído a mais, há coisas a mais; a nossa sociedade está saturada de tudo. Acender uma vela é o melhor a fazer, para nos fazer voltar ao silêncio e às palavras.
~CC~
Acenderei as velas e direi poemas de Eugénio de Andrade, Sophia de Mello Breyner, David Mourão Ferreira e José Gomes Ferreira...
Muito belo o texto.
Um abraço.
é tão bom regressar à luz trémula das velas. e com uma avó, recuamos até ao passado sem electricidade
aceso.
em fogo que não extingue. nem o verbo nem a noite nem os dias de tempestade nem um céu musical.
aceso o texto. aceso a luz que o "vela".
e
apago-me.....que mais não sei.
mas deixo o meu beijo.
sempre.
(piano)
"a nossa avó é uma jovem princesa... um cristal..."
"poetas- criaturas artesãs de palavras..."
"...quando o silêncio se cala..."
A família (reunida), os cães, o conforto da lareira, a música, a poesia, a afectividade, a sensibilidade, o amor ... de mãos dadas!
- Que belo ambiente familiar em fim-de-semana mais que chuvoso!
Memórias
afectuosamente
re)vividas ao som da mãe natureza..
Uma pianha de emoções
ateadas pela chama das velas
pelo brilho dos olhos
e pelos vossos corações...
Enfim,
Ter netos poetas capazes
de tão bela
peça de artesanato
é um privilégio!
Parabéns à avó!!!
Parabéns ao neto!!!
princesa
De como a palavra pode transformar-se em pincel e encher de cor e calor um dia de inverno!
Como foi bom estarem lá os cães...
Uma bela prosa, relatada com carinho.
Sente- se na arte do bem- escrever.
Beijos
a sabedoria evita a ribalta e as luzes. ficticias.
alimenta-se de relâmpagos e trovões. e do calor dos afectos. que os cães assinalam...
que posso dizer-te sobre a qualidade do texto? de deslumbramento é a palavra.
abraços, meu amigo.
E é tão importante acender as velas! Sobretudo em noite de tempestade purificante!
Um belo texto que relembra e marca o valor inestimável dos avós!
E realmente... uma tempestade sem relâmpagos não tem "aquele encanto" :)
Um bom fim-de-semana!
Eufrázio,
maravilhosas lembranças,
um bom começo de livro
.agarrou-me.
e, também gosto de 'assistir' à trovoada. já a 'mostrei' algumas vezes aos filhotes . para perderem o medo e sentirem apenas o fascínio e o respeito ...
adorei este texto. obrigada.
bom Domingo
um sorriso :)
mariam
Que maravilha...que bonito...
Um grande abraço.
A palavra mágica
dorme na sombra
de um livro raro.
Como desencantá-la?
É a senha da vida
a senha do mundo.
Vou procurá-la.
Vou procurá-la a vida inteira
no mundo todo.
Se tarda o encontro, se não a encontro,
não desanimo,
procuro sempre.
Procuro sempre, e minha procura
ficará sendo
minha palavra.
Carlos Drummond
Lindo domingo!
abraços
Acendeste as velas da poesia em concerto.
como eu gostava de ser convidada para essas tempestades!
belíssimo texto!
abraço.
e está-se muito melhor à luz das velas!
É um prazer poder voltar aqui.
Bjs*
Já aqui tinha estado, num dia em que também recordava a minha Avó... por isso, não comentei. Demasiadas recordações.
Obrigada por teres voltado.
Bjs
acendeste a palavra
escreveste a luz
sem apagar as velas
e
a memória
de NÓS
.
um beijo
votos de uma boa semana! :)
mariam
Amigo Eufrázio, confesso: não sei bem do que gosto mais, se da sua poesia se da sua prosa, mas, como sou também grande leitor de contos e a sua escrita neste registo para além de escorreita é imaginativa, acho que balanço para este lado.
Gostei imenso, mesmo estando fora de questão imaginar-me com o gozo dos protagonistas a assistir a tal espectáculo.
Fico mais do lado dos cães, calado.
Grande abraço.
A beleza de um regresso aos tempos da minha avó.
Obrigada.
comovente Eufrázio
.
.
.
respiro
na luz do relâmpago
no afecto cálido das velas
na música das sombras
______
um beijo
Lindo texto, relatando esse momento unico com tua avo..
Quando o lê-mos, estamos ali contigo a ouvir tua avo recitando poesia..
jinhos
Um texto em prosa que é um hino à poesia.
Está verdadeiramente magistral.
Acendam as velas!
Para regressar à minha infância.
Bem bonito o texto!
Abraço
também eu acredito mais na poesia que nos poetas...e assim à luz da vela...é fabuloso!
beijos
mais uma vez surpreendo-me com as palavras e as ideias...
abraço e parabens...
Acredito que este trecho faça parte de um livro seu? Acertei?
Se acertei queria pedir-lhe um favor. Que me mandasse um mail com o nome do dito para eu comprar.
Não conhecia o seu blog mas fiquei fã.
simplesmente maravilhoso
e quente
em tudo poesia e culto do oculto. da Luz. da Sombra.
Um beijo
grande
Muito bonito.
Feliz de quem teve uma "Matriarca" assim, à luz de todas as velas.
O trovoar da experiência esbatida no calor de uma vela acesa.
Ai, avó.... o céu que se descobre tal como os anos.
Lindo.
Bj.
Passai aqui neste post para te ler mais uma vez.
Adorei este teu pequeno conto que é tão intenso e tão bem escrito
e fala-nos de tanto, tanto.
Um beijo
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