segunda-feira, 21 de maio de 2007

O BOTIM

desenho de Mário Filipe




Estou a ver a Plaza Mayor, em Madrid. Um belo e amplo espaço rectangular, bordejado de edificios ancestrais, com a mesma cércia. Todos em pedra, madeiras e ferro forjado. Uma longa galeria de lojas a espreitarem pelas arcadas os artistas que por ali trabalham. Um espaço nobre recuperado para a vida, onde apetece ler um livro, ouvir música, nas amplas esplanadas ou sentir o prazer de não fazer nada.

Desta vez e ao contrário do que esperava, a Plaza Mayor estava deserta de tudo. Incrível - até os pombos tinham abandonado o seu poiso preferido na estátua equestre, imponente no centro da praça.

Surpreendido sentei-me num degrau do pedestal da estátua, mesmo por baixo da cabeça do cavalo - para assistir ao lento cair da noite e rascunhar um apontamento para dar voz a tanto silencio.

- ( o silencio é mais verde que o musgo que medra nas fissuras das pedras - paira em todos os poros,habita e dança ao ritmo do pó.
Talvez por isso me apeteça desandar nos teus pés, espreguiçar-me nas ameias do meu castelo preferido e respirar o brilho gaiato dos teus olhos na folhagem. Talvez por isso me apeteça soprar-te nas pétalas para ver estrelas no céu, ouvir Norah Jones, atear uma fogueira e viajar tranquilo por toda as azinhagas).

De súbito - um clique uníssono e estridente acendeu os candeeiros públicos. Despertei da bela letargia - interrompi o rascunho.

Levantei-me - dei ainda duas voltas pelas galerias, subi e desci escadarias centenárias, confirmei o deserto.

Inesperadamente tropecei no Botim - considerado o mais antigo restaurante do mundo, na rua dos Cuchilleros.

Quando entrei a porta de madeira rangeu. Imediatamente comecei a gostar da visita a esta catedral da gastronomia - um casamento feliz onde respirei o conforto dos espaços compartimentados, a cozinha rasgada para os olhos, a extrema simplicidade do bom gosto.

Manolo de la Peña, cem quilos de peso à vista desarmada, bochechas avermelhadas pelo forno da lenha e farda branca a rigor, passeava as suas banhas e simpatia pelas mesas dos escassos clientes.

Chegou entretanto a minha vez de ser atendido.

- Sabia que o símbolo de Madrid foi extraído da lenda do urso e do medronheiro? Aconteceu um conflito medieval entre os poderes do reino e eclesiástico com o povo calado mas atento. Ambos queriam a posse da terra - como se não fosse de quem a trabalha. O medronheiro parece ter sido inventado mas o urso ainda existe.

Tentei entender a explicação do Manolo e até lhe falei do nosso Bordalo Pinheiro enquanto partilhávamos sorrisos. Ainda tentei esclarecer o insólito deserto da Plaza Mayor quando de repente as luzes do Botim se apagaram.

No lusco-fusco das velas o Manolo ia dizendo quase em surdina - senhores hay mierda.

Com delicados empurrões lá fui com os outros - porta fora.

De facto o Botim fechava a porta - que desta vez não rangeu.

Na rua dos Cuchileros alguem vociferava àcerca do rebentamento de dois petardos na cidade.

Surpreendentemente ingénuo - percorri de novo as galerias desertas e tentei compreender melhor as pedras da calçada, o isolamento da estátua equestre, a fuga dos pombos, o preço da refeição,o tratado de Mashstricht, a boina basca nas montras dos turistas, a vontade incontornável de um povo pela condução dos seus próprios destinos, a minha coluna vertebral e o desaparecimento do meu rascunho.

No dia seguinte, o Botim - alquebrado pelos anos - cuidava das artroses mas resistia na memória das pedras, com trabalhadores gentis perfilados junto à cozinha.

Com a naturalidade possível dirigi-me a uma das salas e amistosamente declarei:

- Senhor Manolo, a história do urso e do medronheiro é uma lenda ou a coisa existe em versão modificada nos dias de hoje?

Para meu espanto ,da cozinha, uma voz feminina, serena mas firme lia o meu apontamento:

- Sopro-te nas pétalas para ver estrelas no céu.

E eu - saí.

8 comentários:

Maria disse...

Sacaste-me um sorriso.
Porque me vi nas "cuevas" e por aí fora na Plaza Mayor. Bebendo "una cerveza y una lechuga".
Porque, não conhecendo o Manolo, vejo Manolos noutros sítios, em Madrid.
E porque me trouxeste à memória um amigo, que não vejo há muitos anos, que conheci na Bélgica no tempo da outra senhora, que depois do 25A veio para Portugal, que não se chamava Manolo, mas Fernando... Arrikagoitya... e que falava uma outra língua, para além do castelhano, difícil de entender.
Retenho poucas palavras da língua dele: Gora Euskadi Askatuta, e de repente lembrei-me do Patxi Andión.. que vou ouvir, agora mesmo.

un dress disse...

Olá.belO.escreVer.surpreendemente. ingénuo!





porque saísTe...!?

Unknown disse...

Ola Vim ver este Sopro nas Petalas, lindo! Deixo-te um doce bjinho,
Papoila Sonhadora,

Anónimo disse...

Excelente texto informativo, formativo e, sobretudo, poético!
Excelente retrato de quotidianos de pessoas e de espaços, mas também do poeta!
Excelente prosa poética que nos convida a contemplar tão belo quadro representativo!
...História, movimento, suspense, sensualidade ... tudo presente!
Parabéns!
Princesa

sonhadora disse...

Hoje, regresso a mim e pernoito na magia do sonho.
Beijinhos embrulhados em abraços

jrd disse...

Magnífico texto.
E nesse dia, da cozinha do Botim, sairam outros sabores fruto de outros saberes.

Isabel Filipe disse...

"- ( o silencio é mais verde que o musgo que medra nas fissuras das pedras - paira em todos os poros,habita e dança ao ritmo do pó.
Talvez por isso me apeteça desandar nos teus pés, espreguiçar-me nas ameias do meu castelo preferido e respirar o brilho gaiato dos teus olhos na folhagem. Talvez por isso me apeteça soprar-te nas pétalas para ver estrelas no céu, ouvir Norah Jones, atear uma fogueira e viajar tranquilo por toda as azinhagas)."

que belo texto poético ...

foi um deleite lê-lo.

um abraço

Luís Galego disse...

Para meu espanto ,da cozinha, uma voz feminina, serena mas firme lia o meu apontamento:


- Sopro-te nas pétalas para ver estrelas no céu.


ler e reler e pensar que este conto podia continuar...