Caminhava no nimbo dos santos,distraido por sobre as salsas
águas atlânticas ,quando deliciado tropecei os pobres olhos num anfiteatro de estrelícias e antúrios.
Não fora o desmesurado jardim de cimento a ferir a paisagem natural,as cigarras cantariam em grupos polícromos,espontaneos,nos
sucalcos serpenteados pelas belas e verdejantes ravinas.
O tempo ameno convidava ao lazer - o mar parecia sopa - e o
alberto joão estava felizmente no estrangeiro.
Chegado ao novo aeroporto do Funchal - um hino da
engenharia portuguesa,subsidiado pelo continente e exclusivo transito
civil - não tive qualquer dificuldade na passagem pela alfandega.
No táxi que me transportou,tentei dialogar com o motorista que
era inequivocamente português.Lacónico resumiu tudo quanto tinha a dizer com uma frase lapidar que me surpreendeu pela coragem - "o alberto joão é o Funchal mas o povo é a Madeira".E mais não disse.
Num profundo silêncio de nenúfares e libelinhas,a viatura continuou o percurso enquanto eu desfrutava a paisagem e o insólito
acontecia.
Uma pulga,preta,cor da hulha,luzia ,simpática no colarinho branco do motorista - saltitava,bailava,em festa - parecia desafiar-me para
uma conversa - e assim aconteceu.
Em pose de cátedra e voz doce avançou com uma brilhante oratória.Estava no seu púlpito e eu no banco de traz.Juro que não foi
a primeira vez que ouvi uma pulga discursar.
Cruzei os braços,fixei-a nos olhos e escutei.
"Chamo-me Cassilda.Em transito pela vida - aqui pousei nesta ilha que só existe porque o magma entendeu rebentar em bolhas e os homens por conveniencia e aventuras marítimas a povoaram - as povoaram.Não sou de cá, nasci na Póvoa do Lanhoso e agora não sei se por fatalidade do destino ando de táxi com este amigo de ocasião.
Gosto de falar com os passageiros e até já tenho um sotaque indígena.Confesso-lhe que me surpreendo,neste gozo adolescente de semear palavras nos desertos,de dar nome às pedras marinhas,às sereias tresmalhadas e aos turistas que povoam esta vida de sonhos
inventados,percursos e barcos ancorados.
Sem perder a memória do ventre nem da foz dos rios - do chão que piso - dos simbolos que me alimentam a voz - caminharei duna errante até despertar nas areias o irromper dos sonhos acordados,as
minhas alvoradas.
Posso confirmar-lhe que o atlântico não nos separa.Estamos
aqui unidos ancestralmente pela seiva dos afetos,pelos pergaminhos da história,o ar que se respira,o arfar das marés.
O alberto joão é um equívoco madeirense,um paradoxo que só ecoa porque está rodeado de água por todos os lados.Seria boa ideia estimulá-lo para o continente - oferecer-lhe um lugar na Póvoa do Lanhoso.Aqui será sempre uma lebre furtiva aos zig-zag nas romarias
- um ideólogo de bairro a papaguear.
Não se admire se um dia o soba destas ilhas acabar com os filetes de espada preto e o pão de caco.Um dia expulsa-me - mas nesse dia -
caro senhor - eu não me chame Cassilda - hei-de encontrar um modo
de o ferrar".
Estava a Cassilda,bela - inocente e virgem - uma senhora - neste monólogo interessante, quando talvez por excessivo mas consentido protagonismo e entusiasmo saltou para o pescoço do motorista.
Deleitada a Cassilda olhou-me nos olhos.
Impetuoso - com o dedo polegar e o indicador da mão direita o
motorista - indiferente ao discurso da Cassilda - sacudiu-a violentamente e a conversa acabou ali - brutalmente à porta do hotel
Inconformado procurei-a no tapete e transportei-a ao colo.
Na recepção pedi uma cama de casal - e assim ficámos - para
toda a vida.
2 comentários:
Obviamente...
Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo
(Sophia de Mello Breyner Andresen)
Um abraço, num cravo vermelho, Camarada!
Foi a viagem de táxi mais interessante que já ouvi contar!!!
Muitos anos de vida para a Cassilda, soberba!!! Também houve uma Cassilda na minha vida, mas essa ferrava de outro modo...
Um abraço!
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