domingo, 13 de agosto de 2017

MARES DESGRENHADOS





Decepei troncos
de árvores frondosas
para ver a serra
sem empecilhos

vi uma pedra 
com vida por dentro
e um poeta improvável
a libertar-lhe o ventre

desenhei um barco
nos teus olhos
e tudo aconteceu ininteligível
contra todos os destinos

Inesperadamente inventei um deus

ao som de Leonard Cohen
acordei uma vez mais
a fazer versos ou quase nada
e tu lá estavas com voz grave
nua de tudo
despida nos meus espelhos preferidos

Foi assim
nesta viagem de latidos ventos e uivos
que te revi apócrifa
no meu espaço

folha ante-folha
senhora das meias pretas

A deshoras no velho cais
dos barcos sonolentos
subi aos mastros mais altos
segredei-te uma breve mensagem

regressei
ao que julgava ser
o meu último desejo

Foi assim
hoje não atearam fogo
às margens do nosso rio

o mar já nos tinha invadido
com bandeiras de cores lúcidas
e no rescaldo de um fósforo
ainda ardiam palavras
por sobre as águas

Sabíamos senhora
que a poesia pode ser
a arte de inventar um pássaro
desenhar numa folha de papel
a dor que sentimos

ousar a salvação do mundo
e voar

decepar troncos de árvores frondosas
para ver a serra
sem empecilhos

os contornos do teu corpo

Na verdade
há silêncios incontidos que se repetem
vozes que se ateiam
na boca das sementes

e foi assim

cheguei
aonde nunca parti

às pátrias repartidas
aos belos mares desgrenhados


Eufrázio Filipe

17 comentários:

  1. Um poema muito belo que me leva a vários questionamentos.
    Bom domingo.
    Beijinhos,
    Ailime

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  2. Gosto particularmente do teu poetar! Uma ligação profunda ao mar que tanto amo (amamos) e à vida que ele renova em nós a cada doce maré...

    "Sabíamos senhora
    que a poesia pode ser
    a arte de inventar um pássaro
    desenhar numa folha de papel
    a dor que sentimos..."

    uma estrofe que me tocou.

    Sensibilizada pelo 'apoio' amigo.
    Beijo

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  3. Penteados nas linhas, verso a verso, o poeta traça delírios iluminados, que trouxe do mar. E se desgrenhados eram, belos ficaram.
    Abraço.

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  4. O mar... sempre o mar a preencher os silêncios e os versos...
    Lindo....
    Beijos e abraços
    Marta

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  5. Aí está o poeta Eufrázio Filipe com um poema singular. Gostei. Parabéns.
    Um abraço.
    Pedro

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  6. Como sempre, maravilhoso poema!

    Beijo e uma excelente semana

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  7. "cheguei
    aonde nunca parti"

    Diariamente parto, mas nunca consegui atravessar a primeira onda, o mar sempre me traz de volta...

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  8. Novamente o mar a deixar-te desenhar barcos e inventar pássaros e a seduzir a nossa imaginação...
    Um beijo, meu Amigo.

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  9. Magnífica poesia a que aqui li!
    Poemas de inspiração única e construídos de modo inteligente, que nos levam a navegar pela nossa imaginação e fazem a mente trabalhar.
    Um mar no qual dá gosto mergulhar!
    Beijinho,
    Rita

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  10. Palavras ardentes sobre mares desgrenhados, pedras vivas que o poeta esventra,barcos que se desenham no olhar, troncos decepados sem piedade para clarear o horizonte e finalmente o regresso às profundezas do eu, de onde afinal nunca se parte.
    Foi um poema belo, onde tudo se disse em versos perfeitos.
    Um abraço.

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  11. E se a poesia for arte de inventar , bendita imaginação que me leva nos seus mastros !
    Beijo, poeta !

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  12. e desgrenhado ou não
    o mar
    eterna inspiração do(s) Poeta(s)

    muito belo

    :)

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  13. A desoras, em viagens improváveis, o poeta engatilha (n)as palavras e apresenta um poema feito obra de arte.
    Para ler e fruir.
    Bjinho

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