"Para ser grande, sê como és. Nada teu exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa, põe quanto és no mínimo que fazes. Assim em cada lago a luz toda brilha, porque alta demais. "
- Fernando Pessoa.
- Não, Ricardo Reis.
- Estávamos como estamos, num país onde os cães que não mordem se desesperam a ladrar.
- O Dique não ladra.
- Mesmo assim o país, com olhos tristes, ri de cócoras.
- Fernando Pessoa foi um místico.
- Vamos dormir?
- A esta hora todos dormem?
E foi assim neste diálogo de merda, quase institucional, que exaustos da amálgama de sons imperfeitos nos recolhemos ao paraíso dos silêncios tresmalhados.
Aqui - beneficiamos dos improvisos sábios do Dique, do generoso galinheiro com vistas para a rega automática, da serenata das folhas quando o vento lhes assobia.
Um dia parámos as bicicletas numa azinhaga, à porta de uma placa tosca, de madeira, que anunciava - "vendo patos".
Adolescentes como Ricardo Reis, comprámos uma pata com as suas dez crias. Todos mudos para não interferirem no belo canto do galo - um tenor ancião que subia ao poleiro para exibir a voz quando a luz acontecia. Na lua cheia chegava mesmo a enrouquecer, mas o país que o aplaudia, não votava.
Nesta harmonia aparente os patos cresceram e inesperadamente começaram a depenar as galinhas.
O galo deixou de cantar e o Dique esteve na eminência de ladrar mas conteve-se para não se confundir com o poder.
A noite estava cerrada quando decidimos intervir. Transportámos os bancos da cozinha para o galinheiro, um violino e o meu mais recente livro de poemas.
Patos de um lado, galinhas do outro. Nem um piu, um pestanejar de olhos. Só um ressoar de penas para aconchego das asas.
À porta do galinheiro o Dique, imponente - observava, sem dizer uma palavra.
- Começas tu com os poemas?
- Prefiro tocar violino.
Comecei a soletrar um poema e outro e outro, ao som do violino, até os animais adormecerem.
O Dique levantou a cabeça e fez-se luz. Começou a lamber a lua cheia e o galo despertou - começou a cantar.
Retirámo-nos pé ante pé para não perturbar o concerto.
No dia seguinte a pata tinha sido galada pelo tenor. As crias visivelmente reconhecidas afagavam as penas das galinhas, que punham ovos nos sítios mais incríveis.
- Acorda. Acabei de sonhar uma história.
- Outra vez o Ricardo Reis?
- Não a outra.
- Já ouvi essa história e continuo a não entender como é possível um cão de barro, numa noite cerrada, lamber a luz da lua cheia.
Onde está a verdade dos sonhos?
Não existe perda de dignidade, mas esquecimento daquilo que fomos ou somos. E às vezes é preciso uma luz especial, um jeito de enxergar as coisas diferente, para que possamos novamente ser o que somos, nunca menos.
ResponderEliminarOnde está a verdade dos sonhos? Está naquilo que acreditamos.
Sonho lindo!
ResponderEliminarAbraço
Fabulosa fábula.
ResponderEliminarO Dique sabe bem, agora, porque é que há patos que começam a cantar
de galo.
A verdade dos sonhos está dentro dos próprios sonhos e quantas vezes só aí mesmo.
ResponderEliminarNesta estória também e é a única maneira de explicar que um cão de barro consiga lamber a lua cheia.
Tal qual a razão que deixa que uma gaivota se apaixone por essa mesma lua cheia. Mas essa é outra estória. Uma das que eu vou sonhando cá deste lado.
Um abraço.
Será tudo um sonho, até os sonhos...
ResponderEliminarBjos*
Num sonho tudo pode acontecer..
ResponderEliminarTanta imaginação neste texto...
Parabéns !
um beijo
Onde está? Também pergunto :)
ResponderEliminarSão tantas as vezes em que o silêncio é de ouro. Só poesia, violinos, natureza, a terna e autêntica companhia dos animais; é isso apenas o que nos aconchega o sono...
eu não sei.
ResponderEliminargostei demais desta estória/metáfora.
e de como sabes dar a volta e transformar a acidez em poema!
um beijo
está no acreditar... e conseguir!
ResponderEliminar... e os teus "compagnons de la nuit e du jour"... continuam a inspirar-te, a fazer-te respirar ... e a servirem-te de musas... para prosas e poesia... brilhantes!
ResponderEliminarBravo, meu irmão..."compagnon de route de la vie" ... toujours!!!!
Ab.- EL
Adorei edta prosa. Corre bem. A verdade dos sonhos está na sua concretização serena e determinada, nem que leve a vida inteira. Ainda estou de férias. Vou aparecendo ao de leve. Um abraço.
ResponderEliminarUm sonho que é uma gostosa metáfora...
ResponderEliminarBeijos.
Pertinente a pergunta!!!!
ResponderEliminarUm texto de sonho, magistral!
Beijo
Eufrázio,
ResponderEliminarbelíssimo! gostei tanto da imagem 'Comecei a soletrar um poema e outro e outro, ao som do violino, até os animais adormecerem'
obrigada por partilhar 'sonhos'...
um abraço e um sorriso amigo :)
mariam
Um "Animal Farm" alucinado, virado de pernas para o ar. Deve ser do calor...
ResponderEliminarSó sonhando se pode tentar saber...
ResponderEliminarMas que este é um fantástico sonho, é!
Abraço.
É um prazer imenso ler-te!
ResponderEliminarUm beijo meu e bom fim de semana
excelente!!!
ResponderEliminarbeijo.
Excelente texto!
ResponderEliminarUm abraço.
na subversão do texto. e do contexto...
ResponderEliminar(digo eu. com sonhos um tanto ou quanto calcinados...)
excelente texto.
abraço, Poeta.
um violino e o meu mais recente livro de poemas.
ResponderEliminare o violino e o poema fizeram a diferença...
um abraço
A verdade dos sonhos está sempre nos dedos que os traduzem.
ResponderEliminarBeijos, bom domindo quáquá. :)
Os sonhos são o único local em que a verdade acontece.
ResponderEliminarNa vigília, a verdade é comprometida pelas fronteiras da física e pelas barreiras da mente.
Só os cães de barro podem lamber os astros, e parar o momento no tempo, para serem imortais...
Abraço
P.S.-Respondi ao seu comentário, no meu post anterior, na própria página em que comentou
Os sonhos não mentem, mas disfarçam...
ResponderEliminarUma crónica sonhada, é o que é. E fizeste muito bem em transcrevê-la. Está lá tudo, como nos sonhos :)
ResponderEliminarAo ler esta linda
ResponderEliminarprosa poética
consegui...
sonhar
rever o cão de barro
assistir ao concerto
saudar tudo
e todos os sonhos...
subir até ao céu
tocar a lua
e adormecer feliz!!!!
princesa