quinta-feira, 23 de julho de 2009

NA HORA DO GADO



Os silêncios não são todos iguais. Este é o da vasta planície aloirada, mais longo que o espaço dos teus braços abertos. Um silêncio pontuado por rebanhos, azinhagas e azinheiras. Um silêncio de cal e casas rasteiras. Cânticos em grupo ao ar livre quando a lua está cheia e os homens se encontram para falar, cantando.
Neste silêncio de ventos brandos e quentes - que nem parecem ventos - os olhos do senhor Anastácio não se vergam.
Nunca foi maioral mas fazia milagres com o assobio. Cruzava a "estrada" com a bandeira nacional hasteada no cajado, para anunciar ao silêncio que o gado lento ía atravessar.
Pastor de sonhos, dormia com os animais. Só aparecia em casa aos fins de semana.
No Verão, quando o tempo fervia o sangue da planície e o silêncio se tornava insuportável, quando a vida se tornava palha - alugava um táxi na aldeia e levava a mulher e os filhos ao litoral, só para que vissem o mar.

Encharcava os moços de brilhantina e a mãe protestava.
- Tanta brilhantina Anastácio.
- É para os moços não se perderem na praia.

Sentados nas areias molhadas, enquanto os putos se perdiam de vista, o senhor Anastácio dizia baixinho.
- Maria, este não é o meu mar. Esta não é a minha gente. A minha gente são os teus olhos de mel.
- Não mintas.

De súbito o homem do táxi alertou em voz alta.
- Anastácio, está na hora do gado.

Um assobio silvestre e a canalha tresmalhada não apareceu. Teve de percorrer o rasto da brilhantina.

À chegada o gado à solta balia e o senhor Anastácio disse uma vez mais- baixinho.
- Meus filhos, só vocês não se perdem.

29 comentários:

  1. Belo texto...
    "o meu mar são os teus olhos de mel" ...Linda metáfora!
    Os pastores são quase sempre poetas!
    :))

    ResponderEliminar
  2. Delicioso o pormenor da brilhantina, hoje com gel perdiam-se como o gado.

    ResponderEliminar
  3. Um belissímo conto feito de raízes e maresia.
    Todos nós já nos perdemos um pouco nestas sociedades tresmalhadas pelo consumo e pelo egoísmo.
    Há silêncios que são apaziguantes e nos trazem a beleza dos dias.
    Há silêncios que são culpados quando se alimentam da indiferença ou da conivência perante a injustiça. São estes últimos que pretendo romper com o meu grito.Mas é tão pouco...


    Abraço

    ResponderEliminar
  4. Até ele era capaz de se perder nos olhos dela... :)

    beijos

    ResponderEliminar
  5. Muito bom!
    Tu que trazes no peito algo de Manuel da Fonseca.
    Abraço

    ResponderEliminar
  6. Estes são os verdadeiros impérios dos sentidos.

    ResponderEliminar
  7. Texto lindo, harmonioso : auto retrato da alma ?

    ResponderEliminar
  8. Silêncios que procuramos entender... talvez.
    Abraço
    Chris

    ResponderEliminar
  9. asubios e brillantina para non perderse,e silencios baixiños para atoparse,gústoume moito......
    beijhos.

    ResponderEliminar
  10. Um lider por natureza, prudente por necessidade e sonhador. Mas sempre soube onde era o seu lugar.

    bjs

    ResponderEliminar
  11. A voz da terra é azeda no seu soprar ,contrasta com o embalar doce do mar. Porém as suas entranhas geram fios invisíveis se amor.
    As suas palavras são belas, sempre.
    Bj.

    ResponderEliminar
  12. SILÊNCIOS
    Há silêncios bons e outros nem por isso.

    Tristezas já chegam cá para os meus lados.

    A crise bateu à minha porta ontem e uma carta p/Desemprego está aqui à espera de 2ª feira ser entregue no Centro de Emprego.
    Enfim...a vida tem destas coisas!!!

    Neste momento ainda me encontro em convalescença da pneumonia, por isso quase nem posso brincar c/os netos, nem passear, nem fazer arrumações e limpezas de Verão, enfim...há que ter paciência.
    Atenção: não quero ser a "coitadinha" pois algumas pessoas depois de lerem que estou doente, reagem muito mal, com comentários mesmo desagradáveis.

    O meu ultimo post tem a ver com o "MAU" que existe na Blogosfera, fico triste. Mas a vida é assim!

    Deixo-te um beijo e votos de óptimas semanas de Verão.

    ResponderEliminar
  13. Antes de sair para férias passo para deixar meu abraço de agradecimento e de apreço pela qualidade do seu blogue...com excelente poesia.

    Véu de ;aya

    ResponderEliminar
  14. a forma mais bela de dizer o silêncio.

    e de falar destes olhos de mar.

    _________ e é tão grande o olhar do pastor

    Um beijo Eufrázio

    ResponderEliminar
  15. fervente este texto...como silêncio de estevas e muito de sensível movimento no dis.correr da palavra....quente e INTELIGENTE!



    .


    beijo .

    E.

    ResponderEliminar
  16. É sempre tão bom ler a tua escrita...

    Feliz semana, meu amigo.

    ResponderEliminar
  17. curto e profundo no horizonte dos pensamentos...

    ResponderEliminar
  18. Muito bonito este texto... parabéns! nem em atrevo a tecer grandes análises... sou péssima nisso... acho que nem sei o sentido do que eu própria escrevo. Mas como disse um dia Augusto Abelaira, "no dia em que num livro perceber finalmente o que quero dizer, deixo de escrever". Talvez afinal as palavras sejam mesmo muito maiores que nós, que as escrevemos...

    ResponderEliminar
  19. Um silêncio feito palavras sentidas e muito belas.
    Um abraço.

    ResponderEliminar
  20. Claro, vindo das planícies doiradas tinha que se chamar Anastácio, como o meu avô paterno...

    Um forte abraço!!!

    ResponderEliminar
  21. De rebanhos percebem os portugueses. Não de os pastorarem; mas de o serem.

    ResponderEliminar
  22. ... gostei! Um curto texto imbuído de tanta poesia!

    O contraste tremendo do nosso país: a serrania e o mar!
    Mas nas duas 'searas', a vida sempre 'dura' ... a das suas gentes!

    E mesma assim, há tempo para a doçura... 'olhos de mel'!

    ResponderEliminar
  23. quanta ternura
    quanta beleza
    quanta verdade

    tanto MAR


    ( sem mais palavras para não perturbar o encanto que perdura )




    .
    um beijo

    ResponderEliminar
  24. "Os silêncios não são todos iguais. Este é o da vasta planície aloirada, mais longo que o espaço dos teus braços abertos. Um silêncio pontuado por rebanhos, azinhagas e azinheiras. Um silêncio de cal e casas rasteiras. Cânticos em grupo ao ar livre quando a lua está cheia e os homens se encontram para falar, cantando.

    Neste silêncio de ventos brandos e quentes - que nem parecem ventos ..."


    ______________

    Este canto.conto.cante, fervilha
    Tem vida. Cor. Pulsa



    Belíssimo, arável




    um beijo de espigas loiras




    iv

    ResponderEliminar
  25. Até parece que
    alguns dos seus textos
    se soltam do meu ventre....
    Poemas
    prosas poéticas
    de uma ou outra forma
    transportam-me
    para cenários que bem conheço
    onde (re)vejo
    paisagens, seres vivos
    modos de vida
    e pessoas
    que amo e jamais esquecerei.
    Neste destaco
    a planície alentejana
    seus adornos
    e meu pai também!!!

    princesa

    ResponderEliminar