Agapito - aldeia lendária,nos castros dos Montes Hermínios, nas fraldas do Covão d'Ametade, não era mais que um ponto minúsculo no mapa do reino. Um vale quase glaciar enclavinhado na serrania interior onde nunca foi fácil respirar.
Em Agapito ousavam viver cinquenta e tal pessoas, trezentas cabras, mais os lobos e os cães da serra.
Viviam do amanho das pobres terras, da pastorícia e do temor a deus.
Os homens apascentavam cabras e as mulheres faziam de tudo.
Desapercebidos viviam felizes e analfabetos.
O poder do reino ignorava completamente a existência de Agapito, mas um chefe dominava a aldeia - o abade Fiuza, que ali tropeçou por acaso, quando um dia após longa cavalgada, perseguia uma cabra branca. Perdido por ali ficou.
Os agapitenses - construiram-lhe um abrigo para habitar e pregar.
Volvidos os anos a aldeia continuou ignorada, perdeu habitantes e os rebanhos emagreceram.
O abade Fiuza permanecia alegremente no poder.
Neste período de declínio da civilização agapitense, um pombo correio, pousou exausto no ombro do chefe que em silêncio leu a mensagem.
"O reino vais ser percorrido por voluntários, com o propósito de alfabetizar o povo".
- Não pode ser. Não consinto que devassem esta terra.Aqui nem uma letra. A minha gente está feliz.
Reunida a aldeia de emergência, Fiuza declarou o recolher obrigatório. O povo aplaudiu comovido.
- Ficarei de vigía.
Fiuza - fardado a rigor, ungido com óleo de cabra, colocou-se no centro do carreiro principal da aldeia, disfarçado de anjo.Ali ficou dias e noites a fio, pernas abertas, mãos apoiadas na cruz, dentes a postos e um sorriso cordeiro na armadura.
Na rectaguarda os fieis - de joelhos, recolhidos - respiração suspensa. Nos estábulos o gado balia, ordenhava-se a si mesmo.
Agapito - uma aldeia ignorada, no interior do reino, não foi bafejada pela campanha de alfabetização.
O abade Fiuza - firme, sorridente e arrogante, morreu como mártir no seu posto.
O povo - com a serra às costas, vai aprender mais tarde.
lindo como sempre
ResponderEliminare a imagem esta serena, maravilhosa
Jokas
Paula
Acutilante metáfora.
ResponderEliminarum abraço
E foi assim que o vinte cinco de Abril saiu de Agapito sem sequer ter entrado.
ResponderEliminarO abade Fiuza estará certamente a jogar à bisca com o cónego Melo, numa qualquer tasca do céu.
Belíssimo texto!
ResponderEliminarQuantos abades Fiuza por aí?
O povo aprende, mais tarde ou mais cedo.
Beijos
Agapito!!
ResponderEliminarEm 1975 ainda conheci muitos "Agapitos" por este Portugal fora mas depressa correram com os Fiuzas todos. Vale mais tarde do que nunca!
Belíssimo texto, uma excelente metáfora à liberdade que é tão importante como o pão para a boca.
Um beijo
um dia...um dia me dirá como se "conta" assim.
ResponderEliminar.
e saio....com a serra nos olhos.
beijo.
Uma metáfora brilhante!
ResponderEliminarAbraço.
Somos nós que carregamos a serra
ResponderEliminarpesada...
nas nossas costas!
beijo
ausenda
ás vezes acredito que a eterna ignorância tem muito saber...
ResponderEliminarAo reflectir sobre a qualidade de vida dos "letrados"
ResponderEliminarpor vezes
questiono-me sobre a importância de alguns valores actuais
acentes em pilares
considerados sustentáculos do bem estar das pessoas
ditas civilizadas.
Em tempo de crise os "letrados"
carregam às costas:
a serra, o céu e o mar sem cabras nem cães!... e muitas vezes... sem sol nem luar!
Gostei muito deste seu texto.
E, eu que fazia parte do grupo de voluntários destacado para agapito!!!.....
princesa
há anjos... e anjos
ResponderEliminarpor aí à solta!
beijo.
beijooooooooooooooooooooooooooooo.
ResponderEliminarExcelente texto!
ResponderEliminarUma forma subtil e genial de nos relatar uma Grande História. Plena de sentido metafórico...
Muitos parabéns pelo "Post".
Bom fim-de-semana.
Abraços e um sorriso :)
E.Filipe,
ResponderEliminarA imagem, bela, de arrepio (literal)
Agapito, por momentos poderia ser uma qualquer outra aldeia perdida nas fraldas de qualquer serra, poderia ser a minha, aqui à alguns anos atrás, hoje a minha Agapito tem meia dúzia de velhos, menos de meia dúzia de cabras e apenas continua inalterável a missa ao Domingo, mas até essa, acho que já nem se reza todos-os-Domingos!
gosto muito da sua prosa e fico sempre com a impressão que a conheço de outro lugar... impressões...
Bom fim-de-semana
e uma melhor semana
deixo-lhe uma castanha-assada (é tempo delas!)
e um sorriso :)
mariam
Lugares genuínos assim, com tanto para nos ensinar...! Da luta, da resistência, da conquista de direitos que tantas vezes tardam em chegar..
ResponderEliminarUm bom fim-de-semana :)
quem assim escreve...
ResponderEliminar:))
andamos todos de serra às costas. mesmo nas nossas metáforas.
ResponderEliminarbrilhante.
abraço, Poeta!
Uma história de encantar, como só quem encanta sabe contar...
ResponderEliminarPor falar em serra também amanha de manhã vou subir ao ponto mais alto da serra da arrábida, a fim de captar a poesia que por ali paira e que de outro modo não se consegue agarrar com as mãos mas sobretudo com a mente...
Nos meus blogues também estou virado agora para as histórias...
Um abraço!!!
Excelente. Gosto mesmo muito destas suas "fábulas urbanas" desta vez "campesinas" terrivelmente acutilantes devido ao poder da metáfora.
ResponderEliminarBom fim de semana.
de ponto em ponto se conta um CONTO
ResponderEliminarem ABSOLUTO
EN CANTO/CONTO
.
um beijo
Aprender mais tarde... é uma perspectiva, ainda assim, optimista! Miséria é aprender tarde demais. E sim, pode aprender-se quando já o tempo para mudar passou. É esse o ganho dos Fiuzas destes mundos...
ResponderEliminarGrande conto, este!
E o povo, quietinho, lá deixa a guarda a quem nem sabe e que diz conhecer.
ai
...
Uma esbelta dissertação!
ResponderEliminarCumprimentos
se por um lado "os cães não dormem", quando o sono avança inexorável, o instinto e a audição apurada os mantém sempre alertas.
ResponderEliminar"com a serra às costas" constróis uma história de inúmeras possibilidades de interpretação. valeu, mesmo!
deixo um abraço fraterno.
Terrível e bela, a metáfora.
ResponderEliminarUm abraço.
Ler é saber e saber é poder. Os miúdos, todos eles, e nos dias de hoje, também deviam saber isso.
ResponderEliminarGostei.
~CC~
nada como a ignorância para ter poder sobre o povo
ResponderEliminarE não é que a alegoria encaixa, ajustada e certeira?
ResponderEliminarE por quanto tempo mais??
faz tempo que aqui não vinha. gostei. parabéns! muito bom.
ResponderEliminarum abraço
luísa
Também estive na serra... mas na da Arrábida... documentado no Fundamentalidades...
ResponderEliminarUm abraço!!!
Não é conto, não senhor. Não tão gelado e ignoto até porque as mudanças climáticas andam por aí, não tão escondida porque o GPS faz figura, porém Aga com ou sem apitos existem. Mais macios é certo, todavia tão rudes na forma e na acção. Conheço-os.
ResponderEliminarBj.