Na plateia - adversários e inimigos de ocasião, cumprimentavam-se alegremente. As senhoras - umas finas, outras anafadas, outras simplesmente - exalavam uma complexidade de perfumes e tiques, ao lado dos seus amantes. Ali estava em síntese, a chamada nata da nação.
No palco - antes de tomar a palavra, o dr. O.K. lançou os dedos ao nó da gravata. Não o apertou. Guinou-o com elegância para o lado direito.
De um dos punhos da camisa um botãozinho de pérola certificada, precipitou-se do palco e rolou - rebolou-se pela carpete parda que dividia a plateia.
Um senhor bem posto,sentiu a coisa linda mesmo junto de si. Esticou a perna e assentou-lhe a sola do sapato.
As luzes do auditório apagaram-se para que todos se concentrassem no palco onde alguem anunciou
- Está aberta a sessão. O dr. O.K. vai esclarecer o país.
Na sala - pejada de gente lustre, ouviu-se estridente uma saraivada de palmas, que o dr. O.K. agradeceu.
- Não bateu palmas?
- Como sabe, hoje aceitei ser apenas a sua bengala de cego.
No palco - com um plasma gigante, o orador iniciou o discurso. O país estava em directo. Suspenso. A plateia paspalha arfava como o ar que se respira a si mesmo.
- Senhoras e senhores, meus amigos - dirijo-me ao país num momento difícil para a civilização ocidental. A vida tem ciclos, blá, blá, blá, mas o nosso país blá, blá.
O sistema liberal excedeu-se, a crise instalou-se, mas não abandonaremos as dinâmicas do mercado, porque o Estado não faliu.
Senhoras e senhores, compatriotas - por cá estamos reunidos, em família, blá, blá.
Como sabeis a nossa economia está em baixa, as nossas finanças dependentes do exterior. O país terá de apertar o cinto. Lamento ser tão agreste mas de mim só podeis contar com a verdade.
O desemprego vai crescer, mais ainda os que vivem abaixo do limiar da pobreza.
Meus amigos, se não tiverdes confiança no esforço blá, blá, não será possível repensar o sistema e garantir a liberdade. Hoje mais que nunca quero pedir-vos confiança.
A assistencia aplaudiu e lançou blá, blás tímidos para o ar.
- Não aplaudiu?
- Que horas são?
Alguem na plateia que não se conteve, levantou-se e perguntou em voz alta
- Dr. - teremos de apertar ainda mais o cinto?
- Meu amigo, o senhor é meu convidado nesta sala. Sugiro que se retire.
Gerou-se alguma confusão, mas um estafeta de serviço subiu ao palco e segredou ao dr. O.K. - blá, blá, blá.
- Meus amigos, país - a vida tem destas coisas - chegou-me uma bela notícia. Já há dinheiro nos bancos, muitos dólares. Já não é preciso apertarmos o cinto - a não ser aqui ou ali.
A assistencia, eufórica, aplaudiu de pé - gritou blá, blás.
Vizivelmente risonho, o orador continuou
- Antes de terminar, aproveito para recomendar àquele amigo, que me devolva o botão de punho.
O auditório esvaiu-se alegremente.
- Então não diz nada?
- Isto está mesmo a pedir chuva.
Na rua chovia.
"O sistema liberal excedeu-se, a crise instalou-se, mas não abandonaremos as dinâmicas do mercado, porque o Estado não faliu."
ResponderEliminar... e haja lastro a despender com com esse tal "mercado"!!!
com ironia refinada não adoças os beiços das ratazanas. parabéns"
deixo um abraço fraterno.
andava por ali a "mão invisivel" a surripiar botões de punho? quer parecer-me...
ResponderEliminarexcelente texto.
e excelente(s) "blá, blá..."
abraços
Mordaz. Acutilante.
ResponderEliminarExcelente!!!
beijo
isto esta mesmoo a pedir chuva
ResponderEliminarJokas
Paula
Há quem não aperte os cintos porque... não os tem! Em deambulações matinais hoje na cidade de Setúbal assisti aos cenários mais confrangedores dos últimos tempos: uma cidade de gente feia, velha, mal vestida, com mau aspecto, gente desdentada e sofrendo de outras mazelas... mazelas do corpo e da alma... gente que caminhava sem saber para onde, a maior parte segurando sacos de plástico onde apenas cabia uma alface, uma couve ou um pedaço de sonho... gente que de certeza não tem cinto para apertar... enquanto isso os dólares atafulham aqueles que já têm ... tantos dólares!!!
ResponderEliminarExcelente texto. Sarcástico quanto basta.
ResponderEliminarJá agora, o senhor bem posto deu a pérola ao porco?
Abraço
Gostei! Uma pintura excelente da verdadeira realidade.
ResponderEliminarserá que o estado não terá mesmo falido?
ResponderEliminarBela dissertação, pelo real anedótico...que é que somos.
ResponderEliminarSomos?
somos pois!
Gostei da tua ponta de espada acutilante, descarnando com sarcasmo o ridículo que somos.
Somos?
somos pois!
um beijo
terno
e volto!
ResponderEliminar...isto está mesmo a pedir chuva!
:))
adorei. Muito...muito interessante a tua maneira de dizer as coisas. Já to tinha dito?
mais um beijo
terno.
E as águas do mar são as amadurecidas do rio
ResponderEliminar.
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mar aravel queria eu plantar-me!
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e afinal não passou de O.K e blás
Ninguém olhou
Ninguém viu
.
Todos nós arrastamos
bjo doce
Obrigada
O olho divino, piramidal. O dele.
ResponderEliminarO palavrear demoníaco, esfarrapado. O do poder.
As palavras certeiras, interventivas. Estas.
qualquer semelhança com a realidade não é pura coincidência!
ResponderEliminare sim. "isto está mesmo a pedir chuva".
um beijo
uma pérola de humor ao sabor da realidade actual....:)
ResponderEliminare um beijo.
A pedir chuva ou mesmo tempestade...
ResponderEliminarExcelente texto, uma pérola!
Adorei a acutilância mordaz do texto...
ResponderEliminarUm abraço.
...Já todos se pronunciaram acerca deste texto "delicioso"... pouco posso acrescentar.
ResponderEliminarApenas uma simples frase:
"Por favor continue!..."
Um abraço,
Alvarez
Uma alegoria - ia a dizer fábula... - encharcada de ironia, e com uma pérola perdida, a ser disputada por muitos porcos!
ResponderEliminarE a chuva que não chega cá dentro.
acutilante navalha
ResponderEliminar.
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e tantos peixes mortos
afogados numa torrente imunda.
_______
levanto-me
e
abraço-te
maré
muito bem blá, blá... excelente, o sr do colarinho que perdeu o botão de punho...é de colarinho branco...
ResponderEliminara realidade é muito parecida.
abç
Pleno de ironia e bem actual. Adorei os blá, blá :) Isto está mesmo a pedir chuva. **
ResponderEliminarE.Filipe,
ResponderEliminarvoltei,
porque será que tenho sempre a impressão que conheço a sua escrita?! mas de um outro lugar(?)
provavelmente, deliro!
mais um excelente momento, acutilante e tão realista...
bom fim-de-semana
um grande sorriso :)
mariam
Li e retive!
ResponderEliminar:)
Uma ironia acutilante e uma escrita elegante como é hábito.
ResponderEliminarBoa semana.
E não é que parece que já assisti a algo semelhante? Coincidências, claro.
ResponderEliminarBelo texto cheio de ironia.
Um abraço
Já muitos, de facto tinham dito "isto está mesmo a pedir chuva". E choveu...
ResponderEliminarexcelente e irónico
ResponderEliminarqb
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um beijo
Verdadeiramente excelente. De uma acutilância que até arrepia.
ResponderEliminargostei muito.
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