Parti em viagem.com todo o tempo,por vales,rios e montes - mapas rasgados a despertar azinhagas e amoras silvestres.
Tropecei numa aldeia - casas dispersas, outras geminadas, um café, uma taberna,uma mercearia, uma capela, um pelourinho e um apeadeiro de caminho-de-ferro. Uma aldeia linda, afagada por canaviais, chorões e o cantarolar de um riacho onde corriam águas cristalinas.
O Café Moderno exibia um jogo de matraquilhos, seis mesas, e um rádio antigo em voz alta.
- Como se chama a vossa aldeia?
- Bemposta. Diz a lenda que uma senhora real, muito bem vestida e triste, visitava aqui um aldeão. Vinha de charrete e depois partia, nua e sorridente. O Alexandre é que sabe explicar estas coisas. Deve estar no apeadeiro.
No apeadeiro encontrei o Alexandre - um velho que se recusava a ser velho, sentado num banco em frente à linha dos comboios.
- Velho não, um jovem com experiência.
Um dia quis ser músico, precisava de dinheiro e parti. A minha vida foi sempre partir e chegar.
Emigrei para uma grande quinta, sem contrato, perto de Marselha. Uma vez por ano trabalhei ali na apanha da maçã.
Três armazéns albergavam o pessoal - portugueses, espanhóis e polacos.
Os que chegavam primeiro, apanhavam camaratas - os outros dormiam no chão.
Quase sempre chovia nos armazéns. No primeiro ano rasgou-se o meu impermeável . Não fácil resistir, mas resisti.
Cada um tinha um "rego" com cinco quilómetros de macieiras.
Colocávamos o cesto de verga, com alças, amarrado à cintura, subíamos e descíamos o escadote, até apanharmos 350 kg por dia. Quem mais apanhava mais ganhava.
- Mas quem mandava em si?
- Eram as maçãs. Enquanto houvesse uma maçã na árvore, quem mandava era a maçã.
Ouvi dizer que a liberdade não cai do céu, conquista-se no chão que pisamos, mas no meu caso só de escadote, em cima das macieiras.
À noite cada um fazia o seu repasto. Estoirados dormíamos à pressa.
Só tínhamos o domingo para ir aos molhos no atrelado do patrão, abastecer-nos para toda a semana e divertir-nos à chegada no armazém dos polacos.
Os tipos estacionavam um Volkswagen a cair de podre junto do armazém e ligavam o rádio. Uns dançavam com as mulheres que por ali apareciam, outros embebedavam-se e jogavam às cartas.
- E no dia seguinte?
- No dia seguinte, as maçãs geladas entravam-nos pelas mãos até aos ossos.
Um polaco que se dizia iluminado por Deus gritava todas as manhãs - "Estou no topo do mundo" . Um dia caiu do escadote, partiu os dentes e deixou a religião.
Nunca consegui dinheiro suficiente para ser músico, mas fiquei para sempre com uma mulher no coração.
Uma santa mulher que me ensinou a contar pelos dedos todos os silêncios. E a cantar. Mais linda que a Bemposta. Parecia um pássaro azul.
Sou caçador de relâmpagos e o amigo que faz na vida?
- Sou artesão de metáforas.
Eufrázio Filipe
Bom dia!
ResponderEliminarExcelente texto com uma imagem muito sensual!! :)
Especial : Ofereço, os sentimentos mais puros (Dia Mundial da Poesia)
Beijinhos e um execlente dia.
Há viagens assim, há vidas assim.
ResponderEliminarUm feliz dia com poesia.
Abraço
Lindo, lindo, lindo!!!
ResponderEliminarParabéns poeta!
Abraço.
ResponderEliminarUm texto com muito sumo. Adorei.
Abraço
Olinda
Escreve sobre a esperança da vida...
ResponderEliminarLindo...
Beijos e abraços
Marta
Caçador de relâmpagos. Artesão de metáforas. Porque uma mulher te ensinou a cantar e a contar pelos dedos todos os silêncios...
ResponderEliminarMagnífico texto, meu Amigo Poeta.
Uma boa semana.
Um beijo.
Um texto muito belo!
ResponderEliminarMagníficas metáforas.
Um beijinho.
Ailime
E não é um artesão qualquer...belíssima história, ou metáfora?
ResponderEliminarUm abraço.
Uma crónica com gente dentro
ResponderEliminardiria Saramago, se te lesse
Um texto muito belo. Um poema, feito prosa, ou uma prosa cheia de poesia.
ResponderEliminarAdorei.
Abraço
Viva.
ResponderEliminarUma prosa plena de poesia .
Para ti, poeta, neste dia da Poesia, faz voar as palavras e que nos matem de prazer.
Abracinho
Ana
Que belo este Apeadeiro, que belo!
ResponderEliminarLi, reli e ainda cá virei para treler...Bemposta...Sabe que era esse o nome do Monte onde uma das minhas tias vivia, nos meus tempos de criança? O marido era feitor na Herdade da Bemposta.
Se gosto na poesia do Eufrázio, adoro a sua prosa cheia de mil encantos. Adorei.
Um beijo e obrigada.
Belíssimo texto repleto de profundidade e reflexão.
ResponderEliminarUm grande abraço.
Belo texto, caro amigo artesão de metáforas... A felicidade simples do caçador de relâmpagos emociona e cativa. Abraços.
ResponderEliminarUma viagem muito interessante. Gostámos muito do que lemos por aqui
ResponderEliminarConvidamos-vos a ler o capítulo VI do nosso conto escrito a várias mãos "Voar Sem Asas"
https://contospartilhados.blogspot.pt/2018/03/voar-sem-asas-capitulo-vi.html
Saudações literárias
Boa noite artesão de palavras!
ResponderEliminarGosto muito das gentes que contam as histórias assim por dentro!
:)
Um texto com muito poesia e sabor de lenda. Lindo!
ResponderEliminarArtesão de palavras? És tu, amigo.
Bom domingo!
Há apeadeiros em que vale a pena descer, saltar do estribo. A aventura de encontros inusitados,e deslumbramentos entrelinhas são riscos?
ResponderEliminarDescemos pelo texto abaixo. Não cansa. A qualidade, a surpresa, as personagens e diálogos vivos, que fogem à vulgar evidência, são atributos mais do que suficientes para arriscar.
Boa malha.
As palavras e as imagens tornaram imorredouro o mais puro apeadeiro. Abraço poeta.
ResponderEliminarOs teus poemas são únicos, sempre com sumo ainda que se espremam.
ResponderEliminarMas este texto, além do sumo, picou-me os olhos.
Bjo