terça-feira, 20 de março de 2018

O APEADEIRO DA BEMPOSTA






Parti em viagem.com todo o tempo,por vales,rios e montes - mapas rasgados a despertar azinhagas e amoras silvestres. 
Tropecei numa aldeia - casas dispersas, outras geminadas, um café, uma taberna,uma mercearia, uma capela, um pelourinho e um apeadeiro de caminho-de-ferro. Uma aldeia linda, afagada por canaviais, chorões e o cantarolar de um riacho onde corriam águas cristalinas. 
O Café Moderno exibia um jogo de matraquilhos, seis mesas, e um rádio antigo em voz alta. 
- Como se chama a vossa aldeia? 
- Bemposta. Diz a lenda que uma senhora real, muito bem vestida e triste, visitava aqui um aldeão. Vinha de charrete e depois partia, nua e sorridente. O Alexandre é que sabe explicar estas coisas. Deve estar no apeadeiro. 
No apeadeiro encontrei o Alexandre - um velho que se recusava a ser velho, sentado num banco em frente à linha dos comboios. 
- Velho não, um jovem com experiência. 
Um dia quis ser músico, precisava de dinheiro e parti. A minha vida foi sempre partir e chegar. 
Emigrei para uma grande quinta, sem contrato, perto de Marselha. Uma vez por ano trabalhei ali na apanha da maçã. 
Três armazéns albergavam o pessoal - portugueses, espanhóis e polacos. 
Os que chegavam primeiro, apanhavam camaratas - os outros dormiam no chão. 
Quase sempre chovia nos armazéns. No primeiro ano rasgou-se o meu impermeável . Não fácil resistir, mas resisti. 
Cada um tinha um "rego" com cinco quilómetros de macieiras.
Colocávamos o cesto de verga, com alças, amarrado à cintura, subíamos e descíamos o escadote, até apanharmos 350 kg por dia. Quem mais apanhava mais ganhava. 
- Mas quem mandava em si? 
- Eram as maçãs. Enquanto houvesse uma maçã na árvore, quem mandava era a maçã. 
Ouvi dizer que a liberdade não cai do céu, conquista-se no chão que pisamos, mas no meu caso só de escadote, em cima das macieiras.
À noite cada um fazia o seu repasto. Estoirados dormíamos à pressa. 
Só tínhamos o domingo para ir aos molhos no atrelado do patrão, abastecer-nos para toda a semana e divertir-nos à chegada no armazém dos polacos. 
Os tipos estacionavam um Volkswagen a cair de podre junto do armazém e ligavam o rádio. Uns dançavam com as mulheres que por ali apareciam, outros embebedavam-se e jogavam às cartas. 
- E no dia seguinte? 
- No dia seguinte, as maçãs geladas entravam-nos pelas mãos até aos ossos. 
Um polaco que se dizia iluminado por Deus gritava todas as manhãs - "Estou no topo do mundo" . Um dia caiu do escadote, partiu os dentes e deixou a religião. 
Nunca consegui dinheiro suficiente para ser músico, mas fiquei para sempre  com uma mulher no coração. 
Uma santa mulher que me ensinou a contar pelos dedos todos os silêncios. E a cantar. Mais linda que a Bemposta. Parecia um pássaro azul. 
Sou caçador de relâmpagos e o amigo que faz na vida? 
- Sou artesão de metáforas. 



Eufrázio Filipe

20 comentários:

  1. Bom dia!
    Excelente texto com uma imagem muito sensual!! :)

    Especial : Ofereço, os sentimentos mais puros (Dia Mundial da Poesia)

    Beijinhos e um execlente dia.

    ResponderEliminar
  2. Há viagens assim, há vidas assim.
    Um feliz dia com poesia.

    Abraço

    ResponderEliminar
  3. Escreve sobre a esperança da vida...
    Lindo...
    Beijos e abraços
    Marta

    ResponderEliminar
  4. Caçador de relâmpagos. Artesão de metáforas. Porque uma mulher te ensinou a cantar e a contar pelos dedos todos os silêncios...
    Magnífico texto, meu Amigo Poeta.
    Uma boa semana.
    Um beijo.

    ResponderEliminar
  5. Um texto muito belo!
    Magníficas metáforas.
    Um beijinho.
    Ailime

    ResponderEliminar
  6. E não é um artesão qualquer...belíssima história, ou metáfora?
    Um abraço.

    ResponderEliminar
  7. Uma crónica com gente dentro

    diria Saramago, se te lesse

    ResponderEliminar
  8. Um texto muito belo. Um poema, feito prosa, ou uma prosa cheia de poesia.
    Adorei.
    Abraço

    ResponderEliminar
  9. Viva.
    Uma prosa plena de poesia .

    Para ti, poeta, neste dia da Poesia, faz voar as palavras e que nos matem de prazer.

    Abracinho

    Ana

    ResponderEliminar
  10. Que belo este Apeadeiro, que belo!
    Li, reli e ainda cá virei para treler...Bemposta...Sabe que era esse o nome do Monte onde uma das minhas tias vivia, nos meus tempos de criança? O marido era feitor na Herdade da Bemposta.

    Se gosto na poesia do Eufrázio, adoro a sua prosa cheia de mil encantos. Adorei.

    Um beijo e obrigada.

    ResponderEliminar
  11. Belíssimo texto repleto de profundidade e reflexão.
    Um grande abraço.

    ResponderEliminar
  12. Belo texto, caro amigo artesão de metáforas... A felicidade simples do caçador de relâmpagos emociona e cativa. Abraços.

    ResponderEliminar
  13. Uma viagem muito interessante. Gostámos muito do que lemos por aqui

    Convidamos-vos a ler o capítulo VI do nosso conto escrito a várias mãos "Voar Sem Asas"
    https://contospartilhados.blogspot.pt/2018/03/voar-sem-asas-capitulo-vi.html

    Saudações literárias

    ResponderEliminar
  14. Boa noite artesão de palavras!
    Gosto muito das gentes que contam as histórias assim por dentro!
    :)

    ResponderEliminar
  15. Um texto com muito poesia e sabor de lenda. Lindo!

    Artesão de palavras? És tu, amigo.

    Bom domingo!

    ResponderEliminar
  16. Há apeadeiros em que vale a pena descer, saltar do estribo. A aventura de encontros inusitados,e deslumbramentos entrelinhas são riscos?
    Descemos pelo texto abaixo. Não cansa. A qualidade, a surpresa, as personagens e diálogos vivos, que fogem à vulgar evidência, são atributos mais do que suficientes para arriscar.

    Boa malha.

    ResponderEliminar
  17. As palavras e as imagens tornaram imorredouro o mais puro apeadeiro. Abraço poeta.

    ResponderEliminar
  18. Os teus poemas são únicos, sempre com sumo ainda que se espremam.
    Mas este texto, além do sumo, picou-me os olhos.
    Bjo

    ResponderEliminar