terça-feira, 18 de novembro de 2014

DONA ARLETE A SANTA DAS MEIAS PRETAS



                                                                                       texto reconstruído


Cantadeira de histórias inventadas decidiu fazer uma viagem de sonho, à semelhança dos pássaros. 
Quando ali chegou, chovia a cântaros. Arregaçou as saias e descalça conseguiu chegar ao "hotel das dunas". 
Viajou por sobre mares e relâmpagos numa avioneta que paciente aguardava em pleno voo o trabalho escravo de um velho - montado num burro a afugentar cabras no piso térreo do chamado aeroporto. As cabras fugiam e a avioneta aterrava. 
A ilha era um corpo branco de areias finas onde aves a pique mergulhavam vertiginosas e cúmplices dos pescadores de lagostas que só abriam os olhos no chão das águas. 
Ao entardecer as dunas arredondavam-se, esbracejavam doces quando a brisa morna lhes aflorava o corpo. 
Na ilha não chovia - só à vista dos habitantes que a viam cair no mar. As cabras à solta, de bocas gretadas, comiam pedras e o "tarafe" que espontâneo medrava a espaços na paisagem deserta - mas à chegada da senhora choveu com abundância e o povo generoso saíu à rua hilariante. 
Houve quem tomasse banho nu em cima dos telhados a proclamar a independência da ilha. 
Quando a senhora chegou entenderam ter sido uma bênção. Rodearam-na em festa, entoaram cânticos, louvores, preces e andores. 
Anos volvidos a senhora ali ficou encantada a despertar silêncios repetidos, a hastear a voz nas memórias da chuva. 
Em noites de lua cheia, cantadeira e santa, ainda hoje sobe à duna mais alta - despe-se de tudo, desfia-se em canções lindas que ninguém entende mas todos aplaudem. 
Chamam Dona Arlete à senhora das meias pretas. Acreditam que vai de novo chover na boca das sementes - e assim vivem pobres felizes de joelhos nas movediças areias. Até ser madrugada.




26 comentários:

  1. Um texto de sonho e de sonhos...
    Gostei imenso da Dona Arlete.
    Bjo, Mar :)

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  2. Ainda se deixam maravilhar por uma santa, com ou sem meias. Por aqui só há terra queimada.

    Abraço

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  3. Amigo poeta!Que maravilha de prosa aqui escreveu,gostei muito.
    Beijinho e boa continuação.

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  4. Caro Mar,
    É surpreendente apreciar sua poesia em conto! O que mais gosto do conto é que sempre existe um vão para o humor e a ironia! Mas quem conta um, "aumenta os pontos"- como já dizia, e esse é o caso da sua heroína Arlete!
    Um beijo!

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  5. Vivo nessa ilha
    Mas já lhe levaram as dunas
    e a nossa senhora

    E não há madrugada que chegue

    (texto assim... insiste nele,
    é um prazer ler)

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  6. ~
    ~ ~ Um interessante conto, em prosa poética.


    ..... Até que uma brilhante alvorada termine com o obscurantismo.

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  7. De desfiar, palavra a palavra, até "ser madrugada".

    Bj.


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  8. Encantada com o voo poético do Eufrázio _ lírico provoca imaginações lúdicas sem a necessidade de entender o poeta apenas nos meter dentro do conto a sonhar com as 'lindas canções' que Dona Arlete 'desfia'...
    Parabéns .É lindo!

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  9. Prosa poética bem 'desfiada'. Gostei muito.
    Mensagem passa para além da 'senhora das meias pretas'.

    Bj

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  10. Que pena a Dona Arlete não ter aterrado em Portugal, em vez da troika!... Além da chuva, que é muita, teríamos mais benesses.
    Nem a Senhora de Fátima suplantou em prodígios milagreiros a Dona Arlete.
    Um texto encantador, que não iremos esquecer.

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  11. eram assim as antigas feiticeiras - e muitas foram queimadas! ...

    que a cuidem os habitantes da ilha. no seu canto...

    abraço, Poeta.

    (sabes quanto aprecio este teu registo de escrita)

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  12. prosa muito interessante, Eufrázio.
    e é como dizes:
    cantos e contos que por vezes não entendemos mas adivinhamos, à medida de quem lê, já que são plenos de imagens lindas.
    e esse é o encanto de quem sabe bem-escrever.
    grata, amigo.

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  13. Bonito texto onde se consegue visualizar na perfeição!

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  14. Há lugares assim, encantados até ser madrugada.

    Belíssimo

    bjs

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  15. Socorramo-nos dos mitos e da magia para encantar as nossas vidas. E que Dona Arlete viva para sempre.

    Bela prosa, caro Mar.

    Abraço

    Olinda

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  16. Um texto com um imaginário fantástico.
    Gostei muito.
    Beijo.

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  17. Há lugares assim, onde a vida se dilui à espera do milagre...
    A D. Arlete é uma impostora, que Deus me perdoe.
    O texto é simplesmente maravilhoso.
    Abraço e bom fim de semana...:)

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  18. Olá, boa noite :)

    Tem um presente aqui:

    http://instantaneospretobranco.blogspot.pt/2014/11/premio-infinity-dreams-2014.html

    Um beijinho e um bom fim de semana!

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  19. Se é santa devemos-lhe devoção.
    Imagética querubínica.

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  20. Nunca é tarde para redescobrir o encantamento de um texto como este em que tudo faz sentido em que pareça.

    Um abraço fraterno

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