domingo, 24 de fevereiro de 2013

A PÉROLA





Na plateia - adversários e amigos de ocasião, cumprimentavam-se alegremente. As senhoras - umas finas, outras anafadas, outras simplesmente - exalavam uma complexidade de perfumes e tiques, ao lado dos seus amantes.
Ali estava em síntese a chamada nata da nação.
No palco, antes de tomar a palavra, o Dr. OK lançou os dedos ao nó da gravata. Não o apertou. Guinou-o para o lado direito.
De um dos punhos da camisa, um botãozinho de pérola certificada precipitou-se do palco e rolou - rebolou-se pela carpete parda que dividia a plateia.
Um senhor bem-posto, sentiu a coisa linda mesmo junto de si. Esticou a perna e assentou-lhe a sola do sapato.
As luzes do auditório apagaram-se para que todos se concentrassem no palco onde alguém anunciou:
- Está aberta a sessão. O Dr. OK vai esclarecer o país.
Na sala pejada de gente lustre, ouviu-se uma saraivada de palmas, que o Dr. OK. agradeceu.
- Não bateu palmas?
- Como sabe, hoje aceitei ser apenas a sua bengala de cego.
No palco, com um plasma gigante, o orador iniciou o discurso.
O país estava em directo. Suspenso. A plateia paspalha arfava como o ar que se respira a si mesmo.
- Senhoras e senhores, meus amigos, dirijo-me ao país num momento difícil para a civilização ocidental. A vida tem ciclos, blá, blá, blá, mas o nosso país blá. 
 blá. O sistema neo-liberal excedeu-se um pouco, a crise instalou-se, mas nós não abandonaremos as dinâmicas dos mercados soberanos, porque o Estado não faliu.
Senhoras e senhores, compatriotas - por cá estamos reunidos em família, blá, blá.
Como sabeis- a nossa economia está em baixa, as nossas finanças dependentes do exterior. O país terá de apertar o cinto. Lamento ser tão agreste mas de mim só podeis contar com a verdade. O desemprego vai crescer, mais ainda os que vivem abaixo do limiar da pobreza.
Meus amigos, se não tiverdes confiança no esforço blá, blá, não será possível repensar o sistema e garantir a liberdade. Hoje mais que nunca quero pedir-vos confiança.
A assistência aplaudiu e lançou blá, blás, tímidos para o ar.
- Não aplaudiu?
- Que horas são?
Alguém na plateia que não se conteve, levantou-se e perguntou com voz embargada.
- Dr. teremos de apertar ainda mais o cinto?
- Meu amigo, o senhor é meu convidado nesta sala. Sugiro que se retire.
Gerou-se alguma confusão, mas um estafeta de serviço subiu ao palco e segredou ao Dr. OK - blá, blá, blá.
- Meus amigos, país - a vida tem destas coisas - chegou-me uma bela notícia. Já há dinheiro nos bancos, muitos euros. Já não é preciso apertar tanto o cinto, a não ser aqui ou ali - blá, blá.
A assistência eufórica, aplaudiu de pé, gritou comovida blá, blás.
Visivelmente risonho, o orador continou:
- Antes de terminar, aproveito para recomendar àquele amigo, que me devolva o botão de punho.
O auditório esvaiu-se alegremente.
- Então não diz nada?
- Isto está mesmo a pedir chuva.

Na rua chovia


  

 

27 comentários:

  1. Um retrato dos tempos surreais que estamos a viver! Uma verdaeira pérola!

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  2. chovia na rua e chovia em nós...

    surrealismo também se precisa.

    um beijo

    :)

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  3. Pois é! Vamos ficando cansados destas monótonas vozes tão depressa agudas como graves, tão depressa brancas como pretas, cheias de blás...blás, com cheiro a naftalina.


    Um beijo

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  4. Ao fundo, um grupo empunhando cartazes contra a troika, entoava Grândola Vila Morena.

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  5. A Justine tirou-me as palavras.
    A propósito não deste uma bengalada no outro?...

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  6. ...fabuloso!

    Abraço!

    Nota: Por compromissos assumidos, não me foi possível estar na livraria AO PÉ DAS LETRAS, mas sei que foi um bom fim de tarde!

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  7. Olá, boa noite!
    Actualidade! Já estamos todos cheios desse blá ,blá, blá!!!Um abraço.
    M. Emília

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  8. Blá, blá, blá...
    'Isto está mesmo a pedir chuva."

    Beijo

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  9. Porque será que o blá, blá não me é estranho?
    Cumps

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  10. enfim, o milagre da multiplicação das pérolas...

    excelente, escritor de parábolas!

    abraço, meu amigo

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  11. Estava a ler... quando entra em cena outro Dr. OK, depois de no noticiário ter dado a reportagem que acabas de ter reportado.

    Isto está mesmo a pedir chuva.

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  12. Carinhosamente estou passando para deixar meu carinho,também desejar uma linda noite .
    Uma semana de paz.
    Beijos.
    Evanir.

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  13. Um retrato do país, infelizmente.
    Só alguns têm direito a pérolas e não as querem perder...

    Gostei da ironia.
    Beijinho. :)

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  14. blá, blá, blá... (eles)



    resposta (nossa):

    blá??? BLÉ, BLI, BLÓ, BLU!

    tradução - necessidade de uma grande trovoada, acompanhada de vento forte e impiedosa queda de granizo.

    Beijo

    Laura

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  15. Sinto que me está a "escapar" qualquer coisa... e não é uma pérola... deixo um abraço!

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  16. E se no dia dois chover muito?
    Como sempre muito bem escrito
    e a deixar que a nossa imaginação
    funcione.Bj.
    Irene Alves

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  17. "Não deis aos cães o que é santo, nem lanceis ante os porcos as vossas pérolas"

    E há muito que andamos a entregar as nossas pérolas a porcos...que continuam no blá blá; que pena!

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  18. ... pérolas, sem dúvida, estes textos.

    abraço fraterno
    Mel

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  19. E eu desisti de ver telejornais, cansei de tanto blá blá.

    Gostei.

    Bjs

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  20. Muito muito muito bom fiquei a rir dos blásblásblás ...
    e o espertinho pensou ser mais que Dr.OK
    ... e a platéia sempre a aplaudir...
    um abraço

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  21. Os blá, blás do nosso descontentamento...

    Abraço

    Olinda

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  22. Parece que esse "bla, blás" e a inércia da platéia (apesar do estardalhaço dos aplausos), assolam o mundo...

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  23. E a pérola preciosa é você, meu amigo.

    Os euros não sei se voltam rápido,
    mas lamento dizer...penso que não!

    Belo texto!

    Maria luísa

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  24. Gostei, como sempre gosto de tudo que escreve.

    Beijinhos.

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  25. Andei por aqui a ler, a ler...e resolvi deixar o comentário neste post, pois considero-o excepcional na forma como caracteriza bem a situação que vivemos.

    bjs

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