domingo, 11 de outubro de 2009

CAÇADOR DE RELÂMPAGOS




Um dia disseste que todas as estações são apeadeiros do meu corpo e eu respondi-te que uma folha caía a teus pés e tu disseste que não eram os teus pés mas tão só dois pedestais. Estávamos de novo no Outono e tu surpreendeste-me porque sabias que a folha caíu aos teus pés e voltaste a dizer mas de outro modo - Ai se os meus pés fossem pedestais.
Foi então em conversa com um grupo de árvores que todas me disseram para não reparar nas folhas que caem porque sempre  algumas se levantam e  até as persistentes gostam de um sopro para voar.

Quando a meio da noite, ainda os galos não cantavam, entendeste por bem revelar-me um segredo e disseste baixinho, para eu acordar devagar
-- Fui convidada para de novo assumir a pasta da cultura. Tenho 24 horas para decidir.
A fingir de sonâmbulo respondi-te em surdina
-- Eu tenho um convite para a debulha do trigo na Malhada dos Porcos.
-- Tudo bem, ajuda a reflectir.

Partimos. O percurso tinha boas memórias. Abandonámos a via principal, invadimos as azinhagas. Libertámo-nos no pó das coisas simples. Transcendemos o caminho. Voámos. Assumimos a dimensão do espaço e recordámos uma experiência que não resultou, não sei porquê.
-- Pensei ocultar os teus olhos nos meus só para te olhar mais de perto. Recordas-te?
-- Foi quando te revelei o meu hábito de olhar o chão.
-- Quando tropeçaste uma pedra para atirar à sombra dos pássaros.

Chegámos à Malhada dos Porcos. Já estavam a borrifar o chão da eira com água do riacho. Todos em redor e de mãos dadas. Em movimento quando entraram tímidas as ovelhas. Cantámos.
Circulámos com os animais. Calcámos o chão. Uma festa de amigos.
A roda com o tempo estreitava-se aos poucos até as ovelhas saírem, finalmente livres para os estábulos.
Agradecidos batemos palmas aos animais.
Entretanto chegou o acordeão e a guitarra campaniça. Começou o baile e os petiscos com doces conventuais até o chão ficar duro para no dia seguinte o trigo ser malhado.
-- Uma vergonha.
-- Não sei porquê.
-- Porque adormecemos altas horas na eira, por cima do cereal.
-- Ainda comemos pão daquele trigo.

A luz apagou-se. Acende os candeeiros. A trovoada aproxima-se.
-- Já não se pode dormir nesta casa.
-- Uma vez mais as belas trovoadas, a chuva a lubrificar a terra e os cães que não guardam relâmpagos a protegerem-se na casa dos donos.
-- Abre-lhes as portas.
Esta trovoada brinca aos relâmpagos. Vai e vem, ululante, ribomba nas fortes bátegas. Parece o fim do mundo mas é tão só uma violentíssima trovoada.
-- Ouviste?
-- Um estoiro no jardim.
-- Que belo estoiro.
-- Não me digas que o pára-raios caçou um relâmpago.

-- Recomeçamos?
-- A história da folha aos teus pés? A Malhada dos Porcos?
Já passou.
-- As 24 horas para decidires também já passaram.  Serás a ministra dos meus galinheiros e eu vou aprender a caçar relâmpagos.

38 comentários:

  1. Fábula? Sonho? .. mas a eira do tempo jaz nua de "-rei"
    Soberbo.
    Bj.

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  2. :)))

    Um belo Outono numa bela prosa, repleta de símbolos e profundos significados.

    Bom domingo!

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  3. Um prosa cheia de poesia [a tua]. Com intertextualidade em nome próprio.

    Gostei tanto...


    Um beijo

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  4. Porque os relâmpagos podem ser o sol (nocturno)na eira onde se desfolham as palavras iluminadas.
    Belíssimo.
    Um abraço

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  5. esta forma de escrever cantando...


    e as eiras, onde se recolhem os relâmpagos

    ________
    posso ir contigo?

    beijos

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  6. Uma brincadeira de palavras que faz a gente passear por todas as suas outras brincadeiras, quase como um livro de códigos.
    Só que desta vez você me deu imagens...

    bjs ;)

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  7. Poder nas palavras e ritmica dos acontecimentos.

    Liberdade no concelho... mais uma vez!

    Boa semana.

    Beijo.

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  8. Gostei da cumplicidade. Bonito texto!
    Obrigada pela visita
    Um abraço
    em azul

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  9. rendo.me
    incondicional
    mente


    e quando me convidarem para assumir uma "pasta" ( de preferência mochila ) posso vir bater.te à porta ,caçador de relâmpagos?



    .
    um beijo

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  10. Daqui a muitos anos, escreverás, era uma vez um caçador de relâmpagos e eu voltarei a ler-te com o mesmo sorriso e com o mesmo prazer.

    Uma boa semana, beijos

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  11. Soberbo!!


    ...com os tempos que correm sempre é melhor ficar-se pela cultura dos galinheiros. :)

    um beijo terno.

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  12. Os relâmpagos lá vão iluminando os caminhos do teu labirinto pessoal!
    Fica a certeza de que, por cada folha caída, há duas que levantam voo...

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  13. de rompante. apanho o fulgor deste texto.

    relâmpago sim mas dos que iluminam para sempre. e para sempre o meu abraço.





    (piano)

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  14. Gostei bastante do texto.
    Bem construído, muito bem repartido por cada capítulo, sobretudo muito equilibrado.

    Aceita o convite e espreita

    http://oguizoeogato.blogspot.com

    Um abraço

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  15. luminosas palavras. prenhes de ternura. serena.

    ... e inquietação. contida.

    (e ironia sensivel)

    abraço

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  16. __________________________________

    A sensação que eu tive, foi de que você, foi colocando os pensamentos em forma de palavras,espontaneamente, sem se importar muito com a forma...


    Gostei! Gostei muito... Você escreve bem!


    Beijos de luz e o meu carinho...

    _________________________________

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  17. Olá, Mar Arável...
    A partir da leitura do seu texto só lhe posso dizer que o que vem de si chega em mim, vai e volta a si, por que o irmão não é egoísta, cultiva o nosso jardim, pensa no mundo daqui, no outro, não sei, nem tampouco eu o sei porque sim. Quanto a mim, navego em mares de águas, estagnadas, às vezes, calmas, às vezes, conturbadas, sujeito a vendavais e torvelinhos tamanhos e tais, mas sempre chego a um porto, um litoral, um cais, só, acompanhada, para o melhor ou o pior, apreciando e aproveitando e colhendo a beleza que nos oferece este mundo profundo, sujo, artificial, ainda assim, profundo, pois o timoneiro do meu barco, por vezes sou eu ou não, por que, por vezes, tenho de lhe fazer as vezes de Capitão.
    Bem vindo aos Meus:
    EU E DAÍ
    SÉTIMA ARTE
    e
    sobretudo
    para
    o
    irmão
    POESIA EM LÍNGUA PORTUGUESA.
    Meus cumprimentos,
    Renata Maria Parreira Cordeiro

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  18. Bom dia, Mar Arável!
    Presentinho meu que vai de mim para ti e de ti para mim.

    "Hoje, São Paulo amanheceu chuvoso... a visibilidade é reduzida e quando o dia começa assim, quase ... mas quase que me deixo levar pela cor dele.Mas, ainda bem que foi quase! Olho para fora, e apesar de estar cinza, escolho a luz dentro de mim.Escolho abraçar o dia, porque a vida é algo de bom para ser vivido.Cada dia é um bom dia para viver.E na vida, haveremos de ter dias melhores e outros, não tão bons.Uns dias serão como um passeio por um belo jardim.Outros serão como desertos áridos ou dias de nevoeiro. Por vezes, atravessaremos vales lindos; por outras, subiremos montanhas cheias de pedras e cascalhos.Mas duma coisa, tenho, de certeza: independentemente da paisagem que atravessamos, das escaladas que temos de fazer, cada ser humano tem uma força incrível para resistir e vencer cada uma delas.O problema é que nem todos reconhecem essa capacidade dentro de si.Mas ela está lá. Dentro de cada um.Eu a tenho.Tu também a tens! E nós a temos e a guardamos no coração! Paz."
    Abraços meus, do outro lado, aqui bem pertinho!
    Renata

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  19. Para mim
    o que fica dos relâmpagos
    é a luz

    Beijinho ...

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  20. Ah, esse diálogo é dos bons...Mar vc sempre inspirada.

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  21. ... à caça de caça o caçador de relâmpagos caçou uma ministra para os seus galinheiros.
    Cuida-te, primeiro-ministro-sem-maioria: estás a seguir.

    Texto: cinco estrelas em noite de temporal desfeito.

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  22. Junto com os relâmpagos talvez se possam caçar os sonhos!
    Gosto...quando escreves prosa!

    Beijo

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  23. Vim reler... e deixar um beijo para o teu fim de semana.

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  24. Caçador de Sonhos, de Relâmpagos, de Poesia, Caçador de sentidos nossos, presos neste texto.

    Deixo um convite:

    http://um-cha-no-deserto.blogspot.com/2009/10/convite.html

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  25. Interessante, eu entrei nessa texto como se fosse uma pedra esquecida na eira...
    Li, senti, vivi...só os bons textos produzem esse «milagre».
    Manuela

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  26. Um belo texto onde podemos ver os relâmpagos a riscarem o céu...
    "Pensei ocultar os teus olhos nos meus só para te olhar mais de perto. Recordas-te?"
    Com poderia esquecer?
    Um abraço

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  27. Vim reler o homem/poeta a quem aprendi a conhecer através das suas obras ( efectuadas e escritas).

    Bom final de semana.

    Beijos.

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  28. Somos galinheiro, espero que a parte do caçador de relâmpagos seja verdade.

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  29. Ainda não perdi o encantamento de te ler...

    Um abraço bem grande.

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  30. Um texto para pensar e reflectir...com calma...
    Gostei.
    Abraço

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