Tinha pássaros de esmeralda nos amendoados olhos vivos, " the four season " de Vivaldi, quando as mãos esguias se expressavam por gestos e nós lhe respirávamos o sorriso franco nos contornos do rosto. Exibia um sinal lindo no lado esquerdo dos lábios sensuais e uma longa madeixa de cabelo, meticulosamente entrançado, cor da hulha, pendia-lhe
no decote generoso, por entre os seios, alongava-lhe
o corpo balzaquiano.
Fluente de palavras, não disfarçava o sotaque do leste
latino, nem a simplicidade com que se vestem as pessoas
cultas.
Estávamos na esplanada da centenária Brasileira do
Chiado, afagados pela estátua a Fernando Pessoa.
- Como se chama?
- Ofélia.
- Ofélia?
- Sim, Ofélia Dumitriu. Sou romena, nascida em Malaia,
uma aldeia distante de Bucareste. Sou professora de história de arte, mas ainda não encontrei emprego neste
país.
- Interessante, eu fui ministra da cultura.
- Eu sou apicultor.
- Apicultor?
- Sim, apascento abelhas.
- Que faz a Ofélia desempregada?
- Tal como Fernando Pessoa, " se depois de eu morrer
quiserem escrever a minha biografia, não há nada mais simples. Tem só duas datas - a da minha nascença e a da
minha morte. Entre uma e outra, todos os dias são meus."
- Parece conhecer bem o nosso chão.
- Faço de guia, sonho por conta própria e muito risco.
Arrisco.
Foi assim que viajámos. Deixámos a Brasileira do Chiado e percorremos a rua do Alecrim, uma janela de ar
fresco, rasgada em declive para o Tejo. A Ofélia lá nos foi
descrevendo com detalhes, a história da estátua - hoje uma réplica - de Eça de Queirós, o traçado da rua desde o
terramoto de 1755, o edifício de Siza Vieira, os alfarrabistas - até desaguarmos na Praça do Duque Terceira, uma
das zonas mais chiques da cidade oitocentista.
- Ali ficava o Grand Hotel Central, que Júlio Verne
frequentou e onde parte de "Os Maias" foram inspirados.
A tarde já se tinha esfumado. O sótão do mundo estava coberto de nuvens. Soprava uma brisa fria que nos cortava a pele de mansinho. O rio tossia e nós recolhemo-nos num bar irlandês.
- Os senhores são bem-vindos, mas a Ofélia não pode entrar.
- Desculpe mas esta senhora é nossa convidada. porque lhe está a vedar a entrada?
- A Ofélia sabe que tem muitos pássaros nos olhos.
Sentámo-nos na esplanada. Tomámos chá de S.Roberto.
Em silêncio a Ofélia ouviu-me dizer o texto de Eça no qual se inspirou o escultor Teixeira Lopes.
- " sob a nudez forte da verdade, o manto diáfano da fantasia" .
Entretanto começou a chover. Uma goteira impertinente que se esgueirou do toldo, derramou-se no texto. As palavras - uma a uma - caíram no chão que ficou azul - todo azul, neste caos do Sodré
sempre gostei de reviver as memórias de uma Lisboa antiga
ResponderEliminar...lindo!!! Quantas Ofélias irão continuar a "desfilar" pelo nosso quotidiano, olhar... cada vez e sempre mais... surpreendido... ou não?..
ResponderEliminarQuelino!
No olhar de Ofélia, uma lágrima de gaivota num caos de má partida.
ResponderEliminarMuito bom!
as vezea acho que nasci no tempo errado
ResponderEliminarJokas
Paula
e no tecto do mundo
ResponderEliminartodas as biografias
FANTÁSTICAS
de duas datas registadas.
_______
gostei muito
um beijo
Eufrásio,
ResponderEliminarlindo o percurso,
sábias as palavras,
agora lendo, Ofélia me sinto...
bom resto de semana
um sorriso :)
mariam
Nascemos
ResponderEliminare até ao final
todos os dias são nossos...!
"Entre uma e outra, todos os dias são meus."
Lindo...!
Um beijo
Quando nos deixamos percorrer pela cidade, personagens melancólicas escrevem textos a roçar a beleza do caos.
ResponderEliminarter pássaros nos olhos.....
ResponderEliminar..........................!
(amei).
beijo.
Mar Arável,
ResponderEliminarLembranças do Cais do Sodré.
As Ofélias que existem no interior de cada mulher... Com pássaros nos olhos.
Belo texto.
Bom fim-de-semana.
Abraços e sorrisos :)))
belo retrato de Ofélia...
ResponderEliminarnunca a imaginaria Romena. mas faz sentido,sim...
abraços
Belíssimo texto! Belíssima Ofélia! Belíssimo derramar de palavras pelo chão. Azuis. Caóticas. Mas mesmo assim palavras.
ResponderEliminarDas palavras, das memórias e de uma escrita enxuta e que agarra. Gostei muito.
ResponderEliminarMuito bom.
ResponderEliminarAndei por aqui às voltas dos pássaros nos olhos, coisas de uma certa Lisboa.
Abraço.
Belo texto! De uma Lisboa tão nossa e também de todo o mundo... sem dúvida!
ResponderEliminarBom fim-de-semana :)
é um problema ter pássaros nos olhos...
ResponderEliminarbeijo.
bela estória
ResponderEliminargostei muito.
beijo
grande
Retrato poético/irónico de mulher e de cidade, ambas estrangeiras porque incompreendidas, ou porque caoticamente amadas.Ambas reinventadas pelo gesto amável da palavra.
ResponderEliminar... e eu gostaria de saber apascentar abelhas!
ResponderEliminarE como gostaria de ver o chão todo azul e tentar ler-lhe as letras que se espraiariam pelo caos... e pelo cais de mais um dia.
confesso, na escrita ressalta a humanidade.
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