quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

O CAOS DO SODRÉ




Tinha pássaros de esmeralda nos amendoados olhos vivos, " the four season " de Vivaldi, quando as mãos esguias se expressavam por gestos e nós lhe respirávamos o sorriso franco nos contornos do rosto. Exibia um sinal lindo no lado esquerdo dos lábios sensuais e uma longa madeixa de cabelo, meticulosamente entrançado, cor da hulha, pendia-lhe
no decote generoso, por entre os seios, alongava-lhe
o corpo balzaquiano.
Fluente de palavras, não disfarçava o sotaque do leste
latino, nem a simplicidade com que se vestem as pessoas
cultas.

Estávamos na esplanada da centenária Brasileira do
Chiado, afagados pela estátua a Fernando Pessoa.

- Como se chama?
- Ofélia.
- Ofélia?
- Sim, Ofélia Dumitriu. Sou romena, nascida em Malaia,
uma aldeia distante de Bucareste. Sou professora de história de arte, mas ainda não encontrei emprego neste
país.

- Interessante, eu fui ministra da cultura.
- Eu sou apicultor.
- Apicultor?
- Sim, apascento abelhas.
- Que faz a Ofélia desempregada?
- Tal como Fernando Pessoa, " se depois de eu morrer
quiserem escrever a minha biografia, não há nada mais simples. Tem só duas datas - a da minha nascença e a da
minha morte. Entre uma e outra, todos os dias são meus."

- Parece conhecer bem o nosso chão.
- Faço de guia, sonho por conta própria e muito risco.
Arrisco.

Foi assim que viajámos. Deixámos a Brasileira do Chiado e percorremos a rua do Alecrim, uma janela de ar
fresco, rasgada em declive para o Tejo. A Ofélia lá nos foi
descrevendo com detalhes, a história da estátua - hoje uma réplica - de Eça de Queirós, o traçado da rua desde o
terramoto de 1755, o edifício de Siza Vieira, os alfarrabistas - até desaguarmos na Praça do Duque Terceira, uma
das zonas mais chiques da cidade oitocentista.

- Ali ficava o Grand Hotel Central, que Júlio Verne
frequentou e onde parte de "Os Maias" foram inspirados.
A tarde já se tinha esfumado. O sótão do mundo estava coberto de nuvens. Soprava uma brisa fria que nos cortava a pele de mansinho. O rio tossia e nós recolhemo-nos num bar irlandês.

- Os senhores são bem-vindos, mas a Ofélia não pode entrar.
- Desculpe mas esta senhora é nossa convidada. porque lhe está a vedar a entrada?
- A Ofélia sabe que tem muitos pássaros nos olhos.
Sentámo-nos na esplanada. Tomámos chá de S.Roberto.
Em silêncio a Ofélia ouviu-me dizer o texto de Eça no qual se inspirou o escultor Teixeira Lopes.

- " sob a nudez forte da verdade, o manto diáfano da fantasia" .

Entretanto começou a chover. Uma goteira impertinente que se esgueirou do toldo, derramou-se no texto. As palavras - uma a uma - caíram no chão que ficou azul - todo azul, neste caos do Sodré

20 comentários:

  1. sempre gostei de reviver as memórias de uma Lisboa antiga

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  2. ...lindo!!! Quantas Ofélias irão continuar a "desfilar" pelo nosso quotidiano, olhar... cada vez e sempre mais... surpreendido... ou não?..

    Quelino!

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  3. No olhar de Ofélia, uma lágrima de gaivota num caos de má partida.
    Muito bom!

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  4. e no tecto do mundo

    todas as biografias

    FANTÁSTICAS

    de duas datas registadas.


    _______

    gostei muito

    um beijo

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  5. Eufrásio,
    lindo o percurso,
    sábias as palavras,
    agora lendo, Ofélia me sinto...

    bom resto de semana
    um sorriso :)

    mariam

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  6. Nascemos
    e até ao final
    todos os dias são nossos...!

    "Entre uma e outra, todos os dias são meus."

    Lindo...!

    Um beijo

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  7. Quando nos deixamos percorrer pela cidade, personagens melancólicas escrevem textos a roçar a beleza do caos.

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  8. ter pássaros nos olhos.....




    ..........................!



    (amei).


    beijo.

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  9. Mar Arável,
    Lembranças do Cais do Sodré.
    As Ofélias que existem no interior de cada mulher... Com pássaros nos olhos.
    Belo texto.
    Bom fim-de-semana.

    Abraços e sorrisos :)))

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  10. belo retrato de Ofélia...

    nunca a imaginaria Romena. mas faz sentido,sim...

    abraços

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  11. Belíssimo texto! Belíssima Ofélia! Belíssimo derramar de palavras pelo chão. Azuis. Caóticas. Mas mesmo assim palavras.

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  12. Das palavras, das memórias e de uma escrita enxuta e que agarra. Gostei muito.

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  13. Muito bom.

    Andei por aqui às voltas dos pássaros nos olhos, coisas de uma certa Lisboa.

    Abraço.

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  14. Belo texto! De uma Lisboa tão nossa e também de todo o mundo... sem dúvida!

    Bom fim-de-semana :)

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  15. Retrato poético/irónico de mulher e de cidade, ambas estrangeiras porque incompreendidas, ou porque caoticamente amadas.Ambas reinventadas pelo gesto amável da palavra.

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  16. ... e eu gostaria de saber apascentar abelhas!
    E como gostaria de ver o chão todo azul e tentar ler-lhe as letras que se espraiariam pelo caos... e pelo cais de mais um dia.

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  17. confesso, na escrita ressalta a humanidade.

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