sábado, 15 de novembro de 2008

O APEADEIRO DA BEMPOSTA



- Vamo-nos perder. É uma necessidade respirar outros silêncios para nos encontrarmos.
- Vamos descobrir-nos.

Assim partimos - em viagem, com todo o tempo - por vales, rios e montes - mapas rasgados a despertar azinhagas e amoras silvestres.

- Um dia farei das minhas pedras preferidas - pássaros azuis.

- Pois.

Foi assim que tropeçámos numa aldeia - casas dispersas, outras geminadas, um café, uma taberna, uma mercearia, uma capela, um pelourinho e um apeadeiro de caminho de ferro. Uma aldeia linda, afagada por canaviais, chorões e o cantarolar de um riacho onde corriam águas cristalinas.

Dirigimo-nos ao "Café Moderno" que exibia um jogo de matraquilhos, seis mesas, uma máquina de tirar tabaco e um rádio antigo em voz alta.

- Como se chama a vossa aldeia?

- Bemposta. Diz a lenda que uma senhora real, muito bem vestida e triste, visitava aqui um aldeão. Vinha de charrete e depois partia, nua e sorridente. O Alexandre é que sabe explicar estas coisas. Deve estar no apeadeiro.

Fomos ao apeadeiro e encontrámos o Alexandre - um velho que se recusava a ser velho, sentado num banco, em frente à linha dos comboios.

- Velho não - idoso com muita experiência.

Um dia quiz ser músico, precisava de dinheiro e parti. A minha vida foi sempre partir e chegar.

Emigrei para uma grande quinta, sem contrato, perto de Marselha. Uma vez por ano trabalhei na apanha da maçã.

Três armazens albergavam o pessoal- portugueses, espanhois e polacos .

Os que chegavam primeiro, apanhavam camas, os outros dormiam no chão. Quase sempre chovia nos armazens. No primeiro ano rasgou-se o meu impermeável. Não foi fácil resistir, mas resisti.

Cada um tinha um "rego" com cinco quilómetros de macieiras.

Colocávamos o cesto de verga, com alsas, amarrado à cintura - subiamos e desciamos o escadote, até apanharmos 350kg por dia. Quem mais apanhava mais ganhava.

- Mas quem mandava em si?

- Eram as maçãs. Enquanto houvesse uma maçã na árvore, quem mandava era a maçã. Ouvi dizer que a liberdade não cai do céu, conquista-se no chão que pisamos, mas no meu caso, só de escadote, em cima das macieiras.

À noite cada um fazia o seu jantar e o almoço para o dia seguinte. Estoirados dormiamos à pressa.

Só tinhamos o domingo para ir no atrelado do patrão, abastecer-nos para toda a semana e divertir-nos à chegada no armazem dos polacos.

Os tipos estacionavam um volkswagen a cair de podre junto do armazem e ligavam o rádio. Uns dançavam com as mulheres que por ali andavam, outros por falta de mulheres embebedavam-se e jogavam às cartas.

- E no dia seguinte?

- No dia seguinte as maçãs geladas entravam-nos pelas mãos até aos ossos.

Um polaco que se dizia iluminado por Deus gritava todas as manhãs - " estou no topo do mundo" . Um dia caíu do escadote, partiu os dentes e deixou a religião.

Nunca consegui dinheiro suficiente para ser músico, mas fiquei para sempre com uma mulher no coração. Todos os anos nos encontrávamos e o patrão colocáva-nos sempre nos "regos" ao lado um do outro.

Nos últimos anos só partia a pensar nela - uma santa mulher, mais linda que a Bemposta. Parecia um pássaro azul.

- Pois.

Talvez por isso aqui venha todos os dias, dar corda ao relógio do apeadeiro, que ainda funciona.

A vida continua - só o comboio é que já não passa por aqui.

- Posso fazer-vos uma pergunta?

Que fazem os senhores na vida?

- Valha-nos o tempo das estações.

Andamos perdidos, senhor Alexandre.


26 comentários:

  1. locais (e pessoas) de perdição.sem dúvida...

    de várias "perdições", diria melhor...

    (conheço bem o apeadeiro. do tempo em que os combóios andavam. salva-se ao menos o relógio. nada mal...)

    sensível e amável crónica.

    abraços

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  2. Mais que saber o que fazes, caminheiro, é importante saber para onde vais. Isto é: para onde vamos.

    Seja como for (de comboio, de barco, de patins ou a pé) rememos contra a maré. Esta, a fétida, indecentemente cor-de-rosa.

    Um abraço.

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  3. gostei muito desta "história" repleta de simbolismo...
    abraço

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  4. Bemposta bem postada,
    Lindo! Não há maçã de Adão que valha as maçãs do Alexandre.

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  5. Mar arável,
    de forma quase terna e doce disse tando, principalmente nas entre-linhas!

    é um gosto lê-lo.

    boa semana
    um sorriso :)

    mariam

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  6. Uma bonita história, carregada de simbolismos, de nostalgia do passado e de muita esperança. Porque há consciência e interrogação... :)

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  7. Apetece a gente perder-se...
    Gostei muito do texto. Um abraço.

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  8. perdidos estamos sim....do apeadeiro da esperança em estações mais lúcidas.




    beijo. grande.

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  9. A vida dura e heróica dos emigrantes transformada em dizer poético.

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  10. Para nos encontramos precisamos por vezes de nos perder, de encontrar uma Bemposta no caminho e pessoas verdadeiras que nos emocionam com as suas histórias.
    Abraço,
    ~CC~

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  11. tchi que espanto!
    quanto mais lia mais a necessidade e o querer mais

    e mais

    "alexandres"



    .
    um beijo

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  12. e assim se partia...
    e assim se chegava...
    em fumo neblina
    de noites perdidas
    de dias de vida...!

    Beijos

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  13. Tantas partidas e chegadas contam vidas...

    Brilhantes estas (não) perdidas palavras.

    Um abraço*

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  14. "valha-nos"

    andamos perdidos, sim.

    amei a metáfora.

    ...para além de ter nascido num vilazinha chamada Pinheiro da Bemposta, e que reza a lenda deve o seu nome à presença de uma bela rainha por essas bandas.
    mas não sei se ela visitava um aldeão que a faria sorrir...
    :)

    beijo

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  15. Lindíssimo texto.Pleno de sensibilidade, de nostalgia mas, também de esperança.
    Gostei mesmo muito.

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  16. Mas que alegre está a minha alma, por ter- te encontrado ( após nove meses de ausência... e num ímpeto de desespero, apaguei tudo o que a minha alma sentia e com este meu acto, fiquei sem os contactos.

    Este último post que li avidamente tão replecto de sensibilidade e recordações... um mar de palavras fazendo deslumbrar qualquer um/uma
    que o leia.

    Voltarei...para ler tudo o que não li desde há 9 meses.

    Beijos

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  17. perfiro acreditar que em vez de andarmos perdidos andamos a descobrir-nos!



    bela história.

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  18. procuramos encontrar-nos...
    - o próximo comboio vem um pouco atrasado.
    - pois.
    - vamos comseguir apanhá-lo!

    um beijo
    luísa

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  19. Gente perdida à descoberta do que é importante. **

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  20. "um riacho onde corriam águas cristalinas."

    "nua e sorridente"

    "Eram as maçãs"

    Excelente. Que beleza! Obrigada. :)

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  21. Mar Arável,
    Uma história cativante que me prendeu até ao final...
    Depois diga-me quando passa o próximo comboio, porque quero muito apanha-lo.
    Fique bem.

    Abraços e um sorriso :)

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