Nesta vida que ladra,há um chão de latidos que por vezes nos roi
os ossos e morde o silêncio - se nos calarmos.
Nesta vida onde todos os muros parecem ter uma fenda e os amantes
bem podiam ser pais eternos e namorados.
Nesta vida onde se reproduzem "os filhos dos homens que nunca foram meninos" e mulheres que nunca foram estrelas - apetece-me
continuar a dizer bem alto - plantai árvores crianças.
De facto estávamos no tempo em que todas as histórias eram
mentiras,excepto as inventadas.
Olhos postos na minha araucária preferida - precisamente esta
aqui na minha frente e que ajudei a criar - fixei-me no Dique,
omeu cão de barro.
Na verdade o Dique,após ter sido considerado família,perdeu
a noção do barro,passou a ser cúmplice de memórias e amanhãs.
Nesta atmosfera e talvez a propósito das trovoadas secas que proliferam no tempo que faz,o Dique - completamente solto,confidenciou-me esta história que não resisto a contar,
na presença insuspeita da minha araucária.
O Dique - que nunca gostou de fardas nem de paradas,foi desde
sempre anti-militarista.
Contraditório - já o ouvi defender - guerra à guerra,num conflito
muito grave,quase passional,com a gata da vizinha.
Diferenciava a guerra das palavras,do cheiro a pólvora.
Cão é cão - pensei sem pestanejar.
De qualquer modo afirmava que o poder das armas,nunca foi porporcional à razão dos que as não têm.
Cão é cão - pensei de novo.
A araucária - formosa mas fustigada pelo tempo que faz
e pela história do Dique - não dizia nada,mas atenta aos relâmpagos
de quando em vez lá deixava cair um sinal de pétalas.
Foi num destes instantes que o meu cão revelou a possibilidade
de desalinhar das campanhas bélicas,por via pacífica.
Convocado - apresentou-se de atestado médico em riste,sempre
com a inabalável convicção que uma miopia avançada nunca poderia
resultar num bom artilheiro.
Enganou-se.Os cães ,mesmo os de barro,também se enganam.
Apurado para todo o serviço militar,lá foi a ganir para a instrução,
mas ainda com um brilho nos olhos.
Nos primeiros exercícios físicos,sentou-se a meio do trampolim,
ameaçou deitar todos abaixo no pórtico e no tiro ao alvo apenas acertou
nas tabuletas indicativas.
Exibiu-se como lhe convinha - um verdadeiro soldado de merda,
mas um cão com objetivos - pensei eu de novo.
Um dia e após tanta inaptidão demonstrada,foi convocado
para uma junta médica.
Alguém de bastão apontou uma letra no quadro,tamanho da parede
e perguntou-lhe com voz rouca.
-Que letra é esta?
-Desculpe meu sargento mas não vejo o quadro.
Após uma eternidade de análises políticas e discussões clínicas
o obviamente impoluto colégio militar concluiu por unanimidade
O cão é cego.
Tão delicioso este post, do princípio ao fim....
ResponderEliminar... para quem não for cego e souber ler-TE....
Parabéns, Eufrázio
Um abraço
É fazendo-se. No reino animal, por via da degenerescência das espécies tem vindo a acontecer a muitos animais. Nascem a ver, escorreitos e depois... algo acontece . Tornam-se cegos, mesmo muito cegos ,a ponto de nunca conseguirem ver o trilho do caminho que a natureza e os séculos decretaram...
ResponderEliminarLindo de ironia!
Beijo.
cegueira sábia.
ResponderEliminareu diria.
beijo.
imf.
Dar voz e movimento a um cão de barro, confrontá-lo com situações do quotidiano e conseguir que ele vença as causas deta forma é de Mestre!
ResponderEliminarCom este seu texto consegue fazer rir e prolongar o sorriso a quem o lê.
Quanto mais se lê, mais se sorri!
Concordo consigo:que se plantem árvores para que o Dique continue saudável, pronto para outras aventuras, sempre partilhadas com o seu dono e connosco, leitores assíduos!
princesa
Humor inteligente este que aqui deixas. Há cães de barro ... há quem tenha os pés feitos do mesmo material !...
ResponderEliminarUm beijinho
A escrita do Eufrásio comove-me... por não ser de barro e ter alma.
ResponderEliminarUm beijinho
Adelaide
para qu� olhos
ResponderEliminarse
tudo.por.dentro
refracta
ata
estala
move
dilata
*
"Ensaio sobre a Cegueira dum Cão que não Ladra"
ResponderEliminaruma ideia para o Saramago fazer uma remake do celebrado livro que vai virar filme pela mão do brasileiro Fernando Meirelles.
ps: Serve esta dica para agradecer te agradecer o incentivo que muitas vezes me deixas lá no "xatoo". Muito obrigado EF e, se não venho por aqui mais vezes é porque a "fabricação de posts" me consome demasiado tempo.
um abraço
Tudo o que escreves.... Tem um segundo sentido e há que ler entrelinhas...
ResponderEliminarMais uma narrativa fantástica!
Bom fim de semana,
Bj
Maria
cães, assim sábios, são raros...
ResponderEliminar(a mim só me saiem rafeiros a ladrar às canelas.)
abraços
_______________________
ResponderEliminar_______________________
_______________________
_______________________
"pégadas de um ouro. que a vida sedimenta".
cão é lobo!...
ResponderEliminarcostumo dizer que o sentido de humor é directamente proporcional à inteligência. e a ironia...
brilhante!
beijo MA
B.
Na Cabotagem há notícias daqui.
ResponderEliminarGosto do que escreve. Belo blogue.
ResponderEliminarsábio e perseverante, esse cão de barro...
ResponderEliminarInteressante texto.
ResponderEliminar