quarta-feira, 19 de setembro de 2007

O CÃO É CEGO






Nesta vida que ladra,há um chão de latidos que por vezes nos roi

os ossos e morde o silêncio - se nos calarmos.


Nesta vida onde todos os muros parecem ter uma fenda e os amantes

bem podiam ser pais eternos e namorados.


Nesta vida onde se reproduzem "os filhos dos homens que nunca foram meninos" e mulheres que nunca foram estrelas - apetece-me

continuar a dizer bem alto - plantai árvores crianças.


De facto estávamos no tempo em que todas as histórias eram

mentiras,excepto as inventadas.

Olhos postos na minha araucária preferida - precisamente esta

aqui na minha frente e que ajudei a criar - fixei-me no Dique,

omeu cão de barro.

Na verdade o Dique,após ter sido considerado família,perdeu

a noção do barro,passou a ser cúmplice de memórias e amanhãs.

Nesta atmosfera e talvez a propósito das trovoadas secas que proliferam no tempo que faz,o Dique - completamente solto,confidenciou-me esta história que não resisto a contar,

na presença insuspeita da minha araucária.


O Dique - que nunca gostou de fardas nem de paradas,foi desde

sempre anti-militarista.

Contraditório - já o ouvi defender - guerra à guerra,num conflito

muito grave,quase passional,com a gata da vizinha.

Diferenciava a guerra das palavras,do cheiro a pólvora.


Cão é cão - pensei sem pestanejar.


De qualquer modo afirmava que o poder das armas,nunca foi porporcional à razão dos que as não têm.


Cão é cão - pensei de novo.


A araucária - formosa mas fustigada pelo tempo que faz

e pela história do Dique - não dizia nada,mas atenta aos relâmpagos

de quando em vez lá deixava cair um sinal de pétalas.


Foi num destes instantes que o meu cão revelou a possibilidade

de desalinhar das campanhas bélicas,por via pacífica.

Convocado - apresentou-se de atestado médico em riste,sempre

com a inabalável convicção que uma miopia avançada nunca poderia

resultar num bom artilheiro.

Enganou-se.Os cães ,mesmo os de barro,também se enganam.

Apurado para todo o serviço militar,lá foi a ganir para a instrução,

mas ainda com um brilho nos olhos.


Nos primeiros exercícios físicos,sentou-se a meio do trampolim,

ameaçou deitar todos abaixo no pórtico e no tiro ao alvo apenas acertou

nas tabuletas indicativas.


Exibiu-se como lhe convinha - um verdadeiro soldado de merda,

mas um cão com objetivos - pensei eu de novo.


Um dia e após tanta inaptidão demonstrada,foi convocado

para uma junta médica.

Alguém de bastão apontou uma letra no quadro,tamanho da parede

e perguntou-lhe com voz rouca.


-Que letra é esta?

-Desculpe meu sargento mas não vejo o quadro.


Após uma eternidade de análises políticas e discussões clínicas

o obviamente impoluto colégio militar concluiu por unanimidade


O cão é cego.





16 comentários:

  1. Tão delicioso este post, do princípio ao fim....
    ... para quem não for cego e souber ler-TE....
    Parabéns, Eufrázio

    Um abraço

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  2. É fazendo-se. No reino animal, por via da degenerescência das espécies tem vindo a acontecer a muitos animais. Nascem a ver, escorreitos e depois... algo acontece . Tornam-se cegos, mesmo muito cegos ,a ponto de nunca conseguirem ver o trilho do caminho que a natureza e os séculos decretaram...

    Lindo de ironia!
    Beijo.

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  3. Dar voz e movimento a um cão de barro, confrontá-lo com situações do quotidiano e conseguir que ele vença as causas deta forma é de Mestre!
    Com este seu texto consegue fazer rir e prolongar o sorriso a quem o lê.
    Quanto mais se lê, mais se sorri!
    Concordo consigo:que se plantem árvores para que o Dique continue saudável, pronto para outras aventuras, sempre partilhadas com o seu dono e connosco, leitores assíduos!
    princesa

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  4. Humor inteligente este que aqui deixas. Há cães de barro ... há quem tenha os pés feitos do mesmo material !...

    Um beijinho

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  5. A escrita do Eufrásio comove-me... por não ser de barro e ter alma.
    Um beijinho
    Adelaide

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  6. para qu� olhos


    se


    tudo.por.dentro


    refracta


    ata


    estala


    move


    dilata




    *

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  7. "Ensaio sobre a Cegueira dum Cão que não Ladra"
    uma ideia para o Saramago fazer uma remake do celebrado livro que vai virar filme pela mão do brasileiro Fernando Meirelles.

    ps: Serve esta dica para agradecer te agradecer o incentivo que muitas vezes me deixas lá no "xatoo". Muito obrigado EF e, se não venho por aqui mais vezes é porque a "fabricação de posts" me consome demasiado tempo.
    um abraço

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  8. Tudo o que escreves.... Tem um segundo sentido e há que ler entrelinhas...

    Mais uma narrativa fantástica!

    Bom fim de semana,

    Bj

    Maria

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  9. cães, assim sábios, são raros...

    (a mim só me saiem rafeiros a ladrar às canelas.)

    abraços

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  10. _______________________
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    "pégadas de um ouro. que a vida sedimenta".

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  11. cão é lobo!...

    costumo dizer que o sentido de humor é directamente proporcional à inteligência. e a ironia...

    brilhante!

    beijo MA

    B.

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