Tenho a vaga ideia de ter sido há mais de cem anos,mas admito
que seja um exagero.
Éramos todos muito mais novos e o sol raiava.
Estávamos reunidos por nobres causas de cooperação no seu gabinete e sonhávamos alto de olhos abertos,renovávamos marés,remávamos ventos de areia,contra a corrente.
Sonhávamos o lento caminhar das dunas e as dunas moviam-se.
Recordo que o encontro foi longo e fraterno,tendo o anfitrião
a dado momento interrompido o diálogo para gentilmente pegar
no cinzeiro,atafulhado de beatas,abrir a janela do gabinete e libertar-nos
das cinzas.
Ficámos mais aliviados - até hoje.
Encontrei de novo o senhor chefe de gabinete do ministro -
hoje ministro.Estávamos como há mais de cem anos no mesmo
restaurante.Mesas quase geminadas,mas de costas um para o outro.
A ilha permanece um ponto no colossal mapa do Atlântico.
Pobre mas bela e selvagem - uma deusa para amar a tempo inteiro.
A ilha bordejava de brancas areias delicadas onde ainda corajosas
nidificam tartarugas,supostamente protegidas.
Idílico espaço árido que alguns habitam,na sonolência cálida
e transparente das águas com vista para pequenos rebanhos
de cabras à solta.
O turismo vai adocicando a vida dura,mas não disfarça
as dificuldades impostas.
A ilha permanece ainda uma dádiva da natureza,mas cada vez mais
para invasores por via pacífica,enquanto o povo,na sua terra,
continua a ser uma maternidade para a emigração.
Mais de cem anos volvidos - não fui reconhecido pelo ex-chefe
de gabinete do senhor ministro,talvez por estar previsto para mais tarde
um encontro.
De qualquer modo ele estava ali - mas de costas e distraído e eu só tinha uma possibilidade - olhar de soslaio e fixar-me numa bela duna
aloirada que espreitava,não muito longe,o nosso silêncio.
Foi o que fiz.Fixei-me na duna.
Entretanto e para dilatar o tempo,pedi ao empregado uma sobremesa.
Disse-me que só tinha bolo.
Perguntei - bolo de quê?
Só bolo.
Concordei no preciso momento que o senhor ministro revelava
em surdina um despacho relativo à minha presença na ilha.
"Considero não ver inconvenientes na cooperação,mas as minhas
expectativas estão muito por baixo"
Recordei-me da sua gentileza quando era chefe de gabinete e do
mesmo modo como compreendi o empregado de mesa,não compreendi o ministro.
Passado que foi o período do repasto - faltei ao encontro.
Dirigi-me à duna - e lá do alto dei um grito em crioulo.
AVANTE BUBISTA
Atirei um grão de areia ao poder.Condecorei a senhora da limpeza
com a medalha destinada ao ministro e deste modo
obviamente que o demiti.
Boa!Excelente!
ResponderEliminarTambém já tive o prazer de demitir alguns hoje-ministros ou hoje-chefes de gabinete, ontem-ex com carreira correlativa, mas nunca o contei e, se o tivesse contado, não o teria contado tão bem. Mas estimuláste-me. Qualquer dia tento(-me). E conto, porque vários (não me enganei na primeira consoante, é consoante...) destes contares têm graça.
Um abraço
apreciei a ironia e o gesto de demissão do ministro, tendo como fundo essas paisagens quase lunares que tive o privilégio de conhecer e visitar regularmente.
ResponderEliminar"as dunas moviam-se, lentamente" - mas tantas centenas de anos se passam, velozmente, sobre os mais puros sonhos...
Mais uma bela prosa,com a qualidade que nos tem vindo a habituar.
ResponderEliminarMemórias ou pura ficcção de tempos que, parecendo longíquos, estão ali, tão perto!
Conheço uma ilha de Morabeza e Sabura sem igual, "pobre mas bela e selvagem - uma deusa para amar a tempo inteiro"..."bordejada de brancas areias..." "idílico espaço árido"..."...com rebanhos de cabras à solta"...onde o Povo merece a medalha do ministro.
Será a mesma?
princesa
Como sempre, textos de extraordinária beleza com aquela pitada de moordacidade, de ironia,que não lhes retira , nem um pouco, o seu pendor "poético".
ResponderEliminarObrigada pelos belíssimos momentos que me tem proporcionado.
Eu postei um comentário... mas o vento levou-o ou a minha taralhoquice.
ResponderEliminarAqui vai...
A tua, a nossa ilha permanece matriz entre a infertilidade dos factos,objectivos, consecuções e chavões.Na nossa ilha, a vida segue desigual em cada dia e igual na sua desigualdade. A nossa ilha, linda de morrer, tem dias que fede . Ares glaucos, pesados , pardacentos trazidos possivelmente por outras brisas. Será que o Atlântico se transforma?
A nossa ilha onde as escarpas cada vez ferem mais e as dunas se apagam... A nossa ilha ... ou quem de nós?
Beijo.
A ironia, a verdade e a oportuna demissão.
ResponderEliminarEufrázio
ResponderEliminarontem um ministro teve o que merecia!
mesmo que fosse tudo fantasia
hoje o seleccionador nacional!!!
ainda não tem o que merece
mesmo sendo tudo quase surreal
quem sabe amanhã não é o hómonimo
do autor da máxima "só sei que nada sei"
a ganhar um bilhete só de ida
para onde merecem todos os cretinos
Mais uma vez os meus Parabéns
pelo seu poder de nos fazer transportar
realidade afora
imaginação adentro...
Abraço
Uma memória com um EXCENTE!!
ResponderEliminarUma força nas palavras... Que faz encorajar qualquer um (a)!!
Bom fim de semana,
Beijo
Maria
ilhas...
ResponderEliminarpor aqui.
ironicamente
.ilhas.
beijO
E «está demitido, obviamente demitido» como diz o Jorge Palma! Todos os varredores de rua, empregados de mesa, senhoras da limpeza merecem as medalhas da vida!!!
ResponderEliminarUm abraço!!!
Precisei que me dessem umas dicas sobre o local da acção para poder apreciar melhor. Mas, mesmo sem tal ajuda, teria dito que é um belo texto.
ResponderEliminarUm texto de grande qualidade feito com ironia, inteligência, mordacidade...
ResponderEliminarestará o poder de costas para nós? Espero que assim não seja. Condecorações, presentes, privilégios...sempre a quem trabalha.
Beijinhos
foi há mais de cem anos, mas também me lembro dele. está mais gordo. sem barbas e careca!...
ResponderEliminargostei desse teu grão de ... ironia!
abraços
a "mudez" de um piano.
ResponderEliminarsem acordes ainda.
eventualmente outro dia.
beijo.
Um gôsta di bista ki bu tivi
ResponderEliminardi bubista. ê stâ cu áima...
Ministras bem a palavra.
Também gostei.
Fica bem
Sofia