terça-feira, 11 de setembro de 2007

AVANTE BUBISTA

foto da net



Tenho a vaga ideia de ter sido há mais de cem anos,mas admito

que seja um exagero.

Éramos todos muito mais novos e o sol raiava.

Estávamos reunidos por nobres causas de cooperação no seu gabinete e sonhávamos alto de olhos abertos,renovávamos marés,remávamos ventos de areia,contra a corrente.

Sonhávamos o lento caminhar das dunas e as dunas moviam-se.


Recordo que o encontro foi longo e fraterno,tendo o anfitrião

a dado momento interrompido o diálogo para gentilmente pegar

no cinzeiro,atafulhado de beatas,abrir a janela do gabinete e libertar-nos

das cinzas.

Ficámos mais aliviados - até hoje.


Encontrei de novo o senhor chefe de gabinete do ministro -

hoje ministro.Estávamos como há mais de cem anos no mesmo

restaurante.Mesas quase geminadas,mas de costas um para o outro.


A ilha permanece um ponto no colossal mapa do Atlântico.

Pobre mas bela e selvagem - uma deusa para amar a tempo inteiro.

A ilha bordejava de brancas areias delicadas onde ainda corajosas

nidificam tartarugas,supostamente protegidas.

Idílico espaço árido que alguns habitam,na sonolência cálida

e transparente das águas com vista para pequenos rebanhos

de cabras à solta.

O turismo vai adocicando a vida dura,mas não disfarça

as dificuldades impostas.

A ilha permanece ainda uma dádiva da natureza,mas cada vez mais

para invasores por via pacífica,enquanto o povo,na sua terra,

continua a ser uma maternidade para a emigração.


Mais de cem anos volvidos - não fui reconhecido pelo ex-chefe

de gabinete do senhor ministro,talvez por estar previsto para mais tarde

um encontro.

De qualquer modo ele estava ali - mas de costas e distraído e eu só tinha uma possibilidade - olhar de soslaio e fixar-me numa bela duna

aloirada que espreitava,não muito longe,o nosso silêncio.

Foi o que fiz.Fixei-me na duna.


Entretanto e para dilatar o tempo,pedi ao empregado uma sobremesa.

Disse-me que só tinha bolo.

Perguntei - bolo de quê?

Só bolo.


Concordei no preciso momento que o senhor ministro revelava

em surdina um despacho relativo à minha presença na ilha.


"Considero não ver inconvenientes na cooperação,mas as minhas

expectativas estão muito por baixo"


Recordei-me da sua gentileza quando era chefe de gabinete e do

mesmo modo como compreendi o empregado de mesa,não compreendi o ministro.


Passado que foi o período do repasto - faltei ao encontro.

Dirigi-me à duna - e lá do alto dei um grito em crioulo.

AVANTE BUBISTA

Atirei um grão de areia ao poder.Condecorei a senhora da limpeza

com a medalha destinada ao ministro e deste modo


obviamente que o demiti.





15 comentários:

Sérgio Ribeiro disse...

Boa!Excelente!
Também já tive o prazer de demitir alguns hoje-ministros ou hoje-chefes de gabinete, ontem-ex com carreira correlativa, mas nunca o contei e, se o tivesse contado, não o teria contado tão bem. Mas estimuláste-me. Qualquer dia tento(-me). E conto, porque vários (não me enganei na primeira consoante, é consoante...) destes contares têm graça.
Um abraço

aquilária disse...

apreciei a ironia e o gesto de demissão do ministro, tendo como fundo essas paisagens quase lunares que tive o privilégio de conhecer e visitar regularmente.

"as dunas moviam-se, lentamente" - mas tantas centenas de anos se passam, velozmente, sobre os mais puros sonhos...

Anónimo disse...

Mais uma bela prosa,com a qualidade que nos tem vindo a habituar.
Memórias ou pura ficcção de tempos que, parecendo longíquos, estão ali, tão perto!
Conheço uma ilha de Morabeza e Sabura sem igual, "pobre mas bela e selvagem - uma deusa para amar a tempo inteiro"..."bordejada de brancas areias..." "idílico espaço árido"..."...com rebanhos de cabras à solta"...onde o Povo merece a medalha do ministro.
Será a mesma?
princesa

Donagata disse...

Como sempre, textos de extraordinária beleza com aquela pitada de moordacidade, de ironia,que não lhes retira , nem um pouco, o seu pendor "poético".
Obrigada pelos belíssimos momentos que me tem proporcionado.

Mateso disse...

Eu postei um comentário... mas o vento levou-o ou a minha taralhoquice.
Aqui vai...
A tua, a nossa ilha permanece matriz entre a infertilidade dos factos,objectivos, consecuções e chavões.Na nossa ilha, a vida segue desigual em cada dia e igual na sua desigualdade. A nossa ilha, linda de morrer, tem dias que fede . Ares glaucos, pesados , pardacentos trazidos possivelmente por outras brisas. Será que o Atlântico se transforma?
A nossa ilha onde as escarpas cada vez ferem mais e as dunas se apagam... A nossa ilha ... ou quem de nós?

Beijo.

hfm disse...

A ironia, a verdade e a oportuna demissão.

pé descalço disse...

Eufrázio

ontem um ministro teve o que merecia!
mesmo que fosse tudo fantasia

hoje o seleccionador nacional!!!
ainda não tem o que merece
mesmo sendo tudo quase surreal


quem sabe amanhã não é o hómonimo
do autor da máxima "só sei que nada sei"
a ganhar um bilhete só de ida
para onde merecem todos os cretinos

Mais uma vez os meus Parabéns
pelo seu poder de nos fazer transportar
realidade afora
imaginação adentro...

Abraço

Páginas Soltas disse...

Uma memória com um EXCENTE!!

Uma força nas palavras... Que faz encorajar qualquer um (a)!!

Bom fim de semana,
Beijo

Maria

un dress disse...

ilhas...

por aqui.

ironicamente

.ilhas.






beijO

Alexandre disse...

E «está demitido, obviamente demitido» como diz o Jorge Palma! Todos os varredores de rua, empregados de mesa, senhoras da limpeza merecem as medalhas da vida!!!

Um abraço!!!

Licínia Quitério disse...

Precisei que me dessem umas dicas sobre o local da acção para poder apreciar melhor. Mas, mesmo sem tal ajuda, teria dito que é um belo texto.

Isamar disse...

Um texto de grande qualidade feito com ironia, inteligência, mordacidade...
estará o poder de costas para nós? Espero que assim não seja. Condecorações, presentes, privilégios...sempre a quem trabalha.

Beijinhos

Manuel Veiga disse...

foi há mais de cem anos, mas também me lembro dele. está mais gordo. sem barbas e careca!...

gostei desse teu grão de ... ironia!

abraços

hora tardia disse...

a "mudez" de um piano.

sem acordes ainda.


eventualmente outro dia.

beijo.

Anónimo disse...

Um gôsta di bista ki bu tivi
di bubista. ê stâ cu áima...
Ministras bem a palavra.
Também gostei.
Fica bem
Sofia