Após o repasto,dispersaram os convidados e alguém se lembrou de
Rimskikorsakov.
A noite - quente -esplendorosa e sempre poética caía em nuances
polícromas - as cigarras ensaiavam cânticos sedosos que afloravam
a folhagem.O silêncio melódico estava reposto e a lua cheia tão linda,
desenhava no chão os recortes da casa,iluminava os nossos corpos.
Cantava.
Estávamos no campo,no mar arável das videiras.
Apesar do êxtase a família residente ainda se propôs ouvir o espargir
da água na rega automática.
Entretanto a paz onírica foi interrompida abruptamente e a família
unida - declarou caça a uma mosca varejeira que distraída das regras
democráticas entendeu devassar a cozinha.
A mosca,de facto,era um espectáculo - uma verdadeira besta de insecto.Enorme de asas,gorda,cor do petróleo,patas felpudas,celulite irreversível.Uma suculenta matrona.
Alguém afirmou ter-lhe visto uma cremalheira panorâmica de alvos
dentes aguçados.Na verdade não tinha lábios - exibia com mau gosto erótico uma beiça,tipo ventosa e cheirava a orçamento do estado.
Resultado - mobilização geral.
Em zig-zagues acrobáticos sobre as nossas cabeças,bufava,zunia,
zumbia zumzuns,riscava o espaço com uma baba fluorescente.Quase
política de direita,esfregava tímida as patas dianteiras e discursava arrogante sem aplausos nem substância,ao seu jeito - fluente palha
e em falsete.
Onde poisava deixava marcas,ameaças,impropérios,prepotências
e algumas rezas.Mostrava de quando em vez os olhos fulvos em desafio à lua cheia.A espaços tremulava as asas que pareciam bracinhos,como se fosse uma libelinha.Queria não parecer uma mosca varejeira.
Conclusão - na ausência de uma política coordenada e eficaz para a segurança dos cidadãos - voluntários - movemos-lhe caça cerrada,
meticulosa,com estratégia e tácticas cientificamente aceites na comunidade europeia.Utilizámos códigos em surdina,transmissões
gestuais - armas em riste.
Para a família a questão era tribal e honorária.Fervia-nos o sangue
nas coronárias e houve mesmo alguém que gritou - abaixo a mosca,
viva a liberdade.
Enfim - até o doce de tomate ,caseiro,que demorou à nossa avó seis
horas a cozinhar em lume brando,colher de pau em tacho de barro -
tomates sem pele nem graínhas,ao som da música - até o doce de tomate,cozinhado como quem vai a Fátima a pé lhe oferecemos de bandeja.
Demos-lhe poesia de Florbela Espanca,fizemos-lhe a mesa,demos-lhe
cama e roupa lavada.Estudámos em concílio improvisado o comportamento social dos insectos - chegámos mesmo a ler algumas
crónicas do Eduardo Prado Coelho - tentámos em pausas consensuais
alguns contactos políticos.
As incontronáveis férias são assim.As lojas do cidadão ficam desertas
ficam abertas apenas as maçónicas.O país encerra para transpirar e
até os políticos são considerados filhos de deus.
Entretanto a perversa mosca voejava na cozinha,mobilizava a família.Por vezes aparentemente brincalhona - saltitava nos ponteiros do relógio - escondia-se no buraco da fechadura da porta,nos buracos do queijo flamengo,nos póros da nossa imaginação.Formigava no pingo de suor que escorria lento,curto e grosso pela orelha da avó e em raides
fulminantes,tresmalhava,espreitava e sumia-se como o ar em movimento.
Na sala ao lado - a rádio anunciava mais um ataque à função pública
e a verejeira,espartana mas exausta,finalmente poisava e sorvia no doce de tomate - o seu último desejo.Uma rendição.
A família em bloco,felicíssima - caíu-lhe em cima.Foi mesmo comovente ver toda a tribo unida em torno de uma questão concreta.
Reunidos entendemos não matar a varejeira como se mata uma qualquer mosca.Partimos todos em procissão e fomos depositá-la,
com o doce de tomate irrepetível,junto de um magnifico cipreste.
Regressámos - em silêncio.A lua ainda estava cheia.O Voo do Moscardo - oferecia-nos os últimos acordes.
Entrei... Li... E fiquei deliciada com mais uma crónica!
ResponderEliminarSoberbo!
Bom fim de semana
Bej da
Maria
um belo texto que nos mostra a nossa realidade...
ResponderEliminargostei muito
bjs
Delícia,delícia, delícia.
ResponderEliminarVou arranjar montes de potes de doce de tomate... vou vou... se assim puder capturar a varejeira...
A tua crónica está fabulosamente irónica, toca em tudo, que é preciso.
Perfeito.
Voilá, mon ami, mon chapeau.!!
Beijo.
Excelente...
ResponderEliminarGostei e voltarei!
beijinho e bom fim de semana
Magnifico. Acho que vou ficar com o zumbido no ouvido...
ResponderEliminarPalavras para quê ?
ResponderEliminarSó me resta pedir mais e mais, porque talento e inspiração não faltam.
Um abraço,
Celino
Este texto mostra-nos como o verdadeiro talento consegue transfosmar algo que incomoda em material poético.
ResponderEliminarHá romeiros e romeiros!
Excelente caminhada esta que delicia quem entra nela por instantes e respira em uníssono com e do autor!
Princesa
amén. paz à sua alma!...
ResponderEliminarépicas estas noites de verão pequeno-burguesas!...
abraço
Eufrázio
ResponderEliminarPrender a atenção de alguêm numa caça à mosca
só pode ser sinónimo de grande poder de criação...
um abraço
Se existe insecto que me incomoda é a mosca varejeira... estremeço só de pensar...
ResponderEliminarA mosca, eu sei que faz falta ao equilibrio da Natureza...
Mas as moscas que conheço de outras nojentas varejices... para que servem?
Junto mais um pedacinho à minha pessoa...recolhido neste mundo virtual
Atrai-me a pessoa que prevejo desse lado...Dás-me licença de entrar nesta tua tribo?
Aquele abraço de peito aberto
BIA
O voo do moscardo ..... ouvi essa peça tocada ao piano há uns largos anos atrás... não sabia que havia mãos com 20 dedos..
ResponderEliminarsinfónico...
ResponderEliminaro voo das tuas palavras!!!
requiem to her...!
beijO :)
Que pena a inspiração ser tão sincopada. Ou será falta de tempo? Boas caminhadas, então, e não se esqueça de ir dando conta das paragens.
ResponderEliminarLi... Reli... Trireli...
ResponderEliminarMais um pouco, e sei de cor!...
Se o teu mar é arável? Certamente!... Preparado para que nele caia a semente...
Cá estou a deixar-me embalar, no mar calmo(arável) de ondinha brejeira...
Aquele abraço de peito aberto
BIA
delicioso.
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