segunda-feira, 29 de setembro de 2014

O CAOS DO SODRÉ



                                                   Publicado no meu Caçador de Relâmpagos



Tinha pássaros de esmeralda nos amendoados olhos vivos, The Four Seasons de Vivaldi, quando as mãos esguias se expressavam por gestos e nós lhe respirávamos o sorriso franco nos contornos do rosto.
Exibia um sinal lindo no lado esquerdo dos lábios sensuais e uma longa madeixa de cabelo, meticulosamente entrançado, cor da hulha, pendia-lhe no decote generoso, por entre os seios, alongava-lhe o corpo balzaquiano.
Fluente de palavras, não disfarçava o sotaque do leste latino, nem a simplicidade com que se vestem as pessoas cultas.
Estávamos na esplanada da centenária Brasileira do Chiado, afagados pela estátua a Fernando Pessoa.

- Como se chama?
- Ofélia.
- Ofélia?
- Sim, Ofélia Dumitriu. Sou romena, nascida em Malaia, uma aldeia distante de Bucareste. Sou professora de História de Arte, mas ainda não encontrei emprego neste país.

- Eu sou apicultor.
- Apicultor?
- Sim, apascento abelhas.
Que faz a Ofélia desempregada?
- Tal como Fernando Pessoa, "se depois de eu morrer quiserem escrever a minha biografia, não há nada mais simples. Tem só duas datas - a da minha nascença e a da minha morte. Entre uma e outra cousa todos os dias são meus "

- Parece conhecer bem o nosso chão.
- Faço de guia, sonho por conta própria e muito risco. Arrisco.

Foi assim que viajámos com a Ofélia. Deixámos a Brasileira do Chiado e percorremos a Rua do Alecrim, uma janela de ar fresco, rasgada em declive para o Tejo.
A Ofélia lá nos foi descrevendo com detalhes a história da estátua - hoje uma réplica - de Eça de Queirós, o traçado da rua desde o terramoto de 1755, o edifício do Siza Vieira, os alfarrabistas - até desaguarmos na Praça do Duque da Terceira, uma das zonas mais chiques da cidade oitocentista.

- Ali ficava o Grand Hotel Central, que Júlio Verne frequentou e onde parte de Os Maias foram inspirados.

A tarde já se tinha esfumado. O sótão do mundo estava coberto de nuvens. Soprava uma brisa fria que nos cortava a pele de mansinho. O rio tossia e nós recolhemos a um bar irlandês.

- Os senhores são bem-vindos, mas a Ofélia não pode entrar.
- Desculpe, mas esta senhora é nossa convidada. Por que lhe está a vedar a entrada?
- A Ofélia sabe que tem muitos pássaros nos olhos.

Não entrámos. Sentámo-nos na esplanada. Tomámos um chá de São Roberto.
Em silêncio, a Ofélia ouviu-me dizer o texto de Eça no qual se inspirou o escultor Teixeira Lopes.
" sobre a nudez da verdade, o manto diáfano da fantasia"

Entretanto começou a chover. Uma goteira impertinente que se esgueirou do toldo, derramou-se no texto. As palavras - uma a uma - caíram no chão que ficou azul, todo azul, neste caos do Sodré



 

27 comentários:

Janita disse...

Um belo e original texto.

Pena que das Quatro Estações de Vivaldi, não tivesse encontrado a Ofélia numa Primavera radiosa.
Sem chuva a esborratar a escrita e o sonho.

Excelente e bem escolhida a imagem.

O Caos(em qualquer cais) é sempre como caminhar numa corda bamba, de tacões altos.

Gostei muitíssimo.

Um abraço.

Agostinho disse...

Tanta palavra perdida no chão.
E aqueles que nelas tropeçam nem sequer percebem - pisadas - os sons do cais.
Iliteracia?

fernando disse...

Mar difícel de Arar!

Jc

Anónimo disse...

Lindo, lindo!

Este chão azul há de servir para pintar os dias.

Abraços

Olinda Melo disse...


Um chão pintado de azul com palavras que embalam este rico texto. Uma viagem por locais inesquecíveis da bela Lisboa por não menos bela mulher - Ofélia. A de Pessoa?

Abraço

Olinda

JANE GATTI disse...

É muito prazeroso viajar em sua prosa poética. As imagens são cativantes. Percorri com você e Ofélia a trajetória sobre o chão português e meus pés se tingiram de azul... Abraços.

Obtuso disse...

...li este texto com um prazer indizível...

trepadeira disse...

Como é bom tomar algo com a romena nesse bar onde a não deixam entrar.
Ainda bem.
Ninguém engaiole os pássaros dos olhos, nem as aves do pensamento.

Abraço,

mário

Teresa Almeida disse...

E nessa Lisboa oitocentista as As palavras deslizam das colinas, ao som de Vivaldi, e chegam-nos entranhadas na história de quem a sabe captar desta forma apetitosa maneira.
Um sentido abraço.

Silenciosamente ouvindo... disse...

Gostei demasiado deste seu texto.
Nle misturou várias situações e uma
Ofélia.
O Cais do Sodré...os sítios onde
se proibi a entrada.
Esta Lisboa do presente com muito
do passado e cujo futuro se
desconhece.
Gostei.
Um abraço
Irene Alves

Lídia Borges disse...


Belo texto!
O caos na literatura, "mimese" do caos na realidade.

Um beijo

Agulheta disse...

Amigo poeta das horas!!!Belo demais o texto onde tanta Ofélia vagueia em busca de trabalho pelas ruas deste país de poetas.
Obrigado pela partilha.Beijo

vieira calado disse...

Interessante e desusado!
Saudações poéticas!

Rogério G.V. Pereira disse...

Adoro crónicas
sobretudo com caos
e não caóticas

Por vezes olhos romenos
são mais
e os nossos
menos

Manuel Veiga disse...

nessa altura o Eça confiou a bigodaça e com uma palmadinha nas costas do narrador: "acontece aos melhores falharem o final feliz"

excelente.

abraço, Poeta

ana disse...

Um diálogo interessante.
Boa noite!:))

Lilá(s) disse...

E foi assim que esse chão azul pintou tão belo poema!
Bjs

Sónia Micaelo disse...

Excelente!
Gostei tanto.
Bjs

Odete Ferreira disse...

É prosa. É poesia. É belo e extremamente interessante como esta Ofélia. É profundo. Lê-se muito nas entrelinhas.
O que relevo: elementos anacrónicos bem entrosados num presente; as metáforas; as personificações, a originalidade de alguns verbos (apascento abelhas, por ex.), o jogo de palavras (caos/cais) e um certo non-sense.
Só me resta aplaudir, Mar!
(Gosto imenso deste género literário, entre a crónica e uma espécie de guião para filme.)
Meu beijo :)

Ana Tapadas disse...

E Ofélia (que não era a de Pessoa) trazia com ela o mundo...

Bj

Helena disse...

Depois da delicadeza e originalidade expressa no diálogo, o que "ficou azul, todo azul" foi o meu olhar imaginando os muitos pássaros nos olhos da Ofélia. Que bela imagem!
Sorrisos e estrelas no teu caminhar pelo mundo da poesia.
Helena

Anónimo disse...

Belíssimo diálogo e mesmo que as palavras tenham caído no chão, não faz mal porque o pintaram de azul.

Palavras soltas disse...

Belíssimo!

fernando disse...

Neste Mar Arável não existe encantos de Sereias.

Neste Mar arável não existe Caravelas que navegaram aos confins da Terra com sonhos realizados.

Neste Mar Arável não existe Ilhas Misteriosas com Tesouros Escondidos.

Este Mar é Duro de entender. Principalmente, “Caos do Sodré”!

Jc

jrd disse...

Belo texto, que não podia perder. Intemporal.
De Ofélia fica a presença que tão bem escreveste com o que ela te "ensinou".
É quando nos acontecem estes encontros que percebemos melhor os outros.

Abraço meu irmão

Ailime disse...

Um elevado momento de poesia em prosa!
Beijinhos,
Ailime

Maria do Sol disse...

Sublime.