sexta-feira, 29 de março de 2013

MARINHAS VALENTES



                                          publicado no meu"Caçador de Relâmpagos"

No chão dos marnotos caminhamos azinhagas,comemos amoras,tropeçamos memórias, pedras, pérolas e pó - para compreendermos melhor as palavras de carne e osso - até as metáforas se ajoelharem, como pequenos deuses inúteis à nossa mesa.
Só depois provamos o sal das marinhas. A safra.
O tempo dos homens que chafurdam no moliço.
A distância que nos atrai e separa, a pele esfarrapada para resistir aos Invernos, mastros de flores salgadas nos olhos distantes, a gatinharem no tempo, até ao aborrecimento final.
Após a "bobadela" a marinha começa a parir uma massa branca, que envaidece os homens quando se olham nas sombras curvas projectadas na água.
O sol aparece ao ar livre. Reunido em montículos junto aos tabuleiros das marinhas - aí fica a escorrer as últimas lágrimas.
Depois é o marnoto que enche canastras transportadas à cabeça dos moços-Depois é sempre assim. O mesmo peso até estar construído o grande cone branco.
Antes de regressarmos às azinhagas e comermos o resto das amoras, os homens reúnem-se ao cair da noite, para festejar.
Enquanto se embebedam, cantam com a ajuda de uma gaita de beiços. Há sempre um que vomita e volta a cantar.

São os rudes corações de oiro, meninos triturados, construtores de marinhas valentes. São os que transformam água em pão, enquanto à nossa mesa se ajoelham as metáforas.


 

27 comentários:

  1. Mar Arável,
    Um texto arrepiante. Não tenho palavras para exprimir o que o excelente texto me provocou.

    Uma tela onde a Natureza morta suplanta o olhar vazio dos homens.
    Parabéns.

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  2. as metáforas que se ajoelham
    à nossa mesa
    já os rudes corações de oiro transformaram a água em pão

    tão belo, Eufrázio!

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  3. Já há pouco disso. Por aqui também. Foi um tempo que acabou. Mas ficou a memória.

    Feliz Páscoa

    Abraço

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  4. Metáforas muito evidentes.
    Mas um quadro sem beleza,
    apenas sal das lágrimas e tristeza.
    Aveiro?
    Ou rua das Salinas?

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  5. Anónimo

    Trata-se de uma foto antiga
    na ria de Aveiro
    A vida também é feita de memórias
    pelo menos a minha

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  6. Do sal do mar na terra.
    O sal das palavras que temperam a luta dos homens.
    Belíssimo.
    Um abraço

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  7. Bom amigo!Que palavras que nos encantam a alma,e a rudeza e sofrimento destes homens no ganho do pão,onde as lágrimas continuam salgadas da luta sem fim.
    A foto está magnifica,gostei imenso parabéns.
    Abraço e boa Páscoa

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  8. Só conhecia a tua poesia, mas esta prosa poética é poderosa na sua narrativa pungente de vida. O final é extraordinário.

    Beijinho

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  9. Não comento o texto (venho desprovido de adjectivos) mas o livro. O meu primeiro, aquele que nos deu a conhecer e que, de quando em quando, regresso para ler

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  10. Se te fosse falar do teu texto e da emoção que me causou, ficaria a deambular por momentos da minha infância.
    O meu avô paterno era marnoto. Salinas do Mondego, Figueira, onde ainda hoje o sal se amontoa numa alvura deslumbrante.

    Impressionante o trabalho das mulheres que eram quem transportava as canastras com o sal, dos barcos para as camionetas , numa correria de formigueiro.

    O sal e a vida.


    Beijo grande

    :))

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  11. Lindo como sempre o seu sentir as vidas doridas que nos rodeiam e o seu ajoelhar perante elas.

    São os nossos Cristos!

    Belíssima a conclusão, só por si poesia do mais alto nível:

    "São os que transformam água em pão, enquanto à nossa mesa se ajoelham as metáforas."

    Curvo-me e ajoelho também.

    Beijos




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  12. Vidas salgadas que me fazem provar, agora, o sal de algumas lágrimas. Texto que nos traz notícias de um Portugal profundo, enquanto nos alimentamos de metáforas e acalentamos futilidades.

    Uma excelente Páscoa.

    Abraço

    Olinda

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  13. Texto à maneira de Soeiro Pereira Gomes, Alves Redol, Manuel Fonseca. Muito bom!

    Beijinhos de chocolate...

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  14. Admirável retrato da vida, da vida real, do realismo da vida! Do que poderia ser, do que deveria ser! Hoje, as salinas estão vazias, mero local para turista passar...

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  15. Belíssimo texto da dura realidade da vida dos marenotos de Aveiro.
    O sal cristalizado e o sal do suor dos homens que o safravam-
    Boa Pascoa!
    Beijo

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  16. Nessa passagem, onde o sal, o pão e o ouro nos fazem as vezes. Desejamos a você uma bela caminhada, rumo a coisas que realmente fazem a diferença no cais.

    bjs nossos

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  17. Um belíssimo texto em jeito de homenagem a esses homens e mulheres "que transformam água em pão".


    Um beijo

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  18. Realidades de tempos passados, revividos e belíssimamente contados e recordados, com uma forte nostalgia...
    Cada palavra é um poema!
    Abraço.



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  19. Tão estranho e belo o trabalho desta gente! Tão duro também...
    "(...) a pele esfarrapada para resistir aos Invernos, mastros de flores salgadas nos olhos distantes" é muito bonito!
    Abraço amigo

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  20. Um retrato que se podia adaptar facilmente a faina das vindimas, o mesmo suor, o mesmo esforço, os mesmos rostos e o mesmo empenho...

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  21. Memórias, sem elas não existiríamos, penso...

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