oleo de Paul Lourenzi
Ao som do Gregorian Chant, no Monastery of Montserrat, estava eu a saborear o cd , a ver na minha frente, caírem aves do céu, que mais me pareciam estrelas.
Na verdade estão sempre a cair aves neste chão, que as fecunda, recolhe, sepulta.
Na verdade neste chão de asas e mares desgrenhados, flutuamos tão leves que nem a morte sente os nossos passos.
- Cão de barro?
- Perdão, as estrelas também se conquistam, mesmo as que caem do céu. Foi precisamente por isso que decidi apaixonar-me pelo seu cão de barro.
- Decidiu?
- Sabe, até para amar é preciso ser competente e tomar decisões. É verdade decidi apaixonar-me pelo seu cão de barro e solicitar a sua presença no meu gabinete de trabalho. Acredite que tenho necessidade de partilhar o poder no meu último despacho.
Especulei com a memória e recordei uma outra história que inventei a que dei o título de Sim Senhora Ministra.
Entretanto a lua estava cheia e um vulto elegantíssimo percorria a azinhaga desde o portão até à casa.
Obviamente o portão estava no trinco e o cão preso.
O Dique- observador de silêncios gregorianos - permitiu que o vulto se aproximasse, mas não deixou de roer a corda.
No chão da azinhaga - um som cadenciado - uma espécie de toc-toc-toc na direcção da casa.
Agora sim mais nitidamente, o vulto parecia um espaço habitável, uma mistura de sombras eróticas.
Exibia quase provocadora um caminhar de ancas sofisticado e o clássico aroma do Chanel nº5 trepava as árvores, adocicava os pássaros.
- Senhor, não é um assalto. Tomei a liberdade de invadir pacificamente o seu espaço para lhe fazer um convite personalizado.
- Foi um risco senhora. Aqui quem morde é o dono.
No dia e religiosamente na hora - lá estava eu com o meu cão de barro, no seu faustoso gabinete de trabalho.
Decidida, varreu para o chão toda a papelada, arquivada à vista na larga mesa de reuniões.Colocou na aparelhagem um cd e o reóstato no lusco-fusco . Pegou docemente no Dique.
Subiram para o tampo da mesa e aí dançaram soltos, como as estrelas, cabeças a tilintarem nos cristais do lustre.
Exausta largou o cão e convidou-me para um moscatel roxo.
Sentada no sofá, saias arregaçadas, colocou uma bela caneta de tinta permanente , cravejada de brilhantes e aparo de ouro legal , entre os dedos do pé direito e assinou devagar mas com determinação o seu último despacho oficial.
" a partir de hoje, sou a senhora das meias pretas "
lindissimo
ResponderEliminare sempre de salto
Bjinhos
Paula
ResponderEliminarUma série de absurdos simplesmente magistral, caro Mar. E no reino dos absurdos tudo é possível.
Aves que caem do céu como estrelas, um cão de barro que se decide amar, prendê-lo com se representasse perigo, o Chanel que trepa as árvores, o dono que morde,o pormenor do reóstato, o despacho tão peculiar e escrito de forma ainda mais peculiar.
Fantástico!
Meu amigo um dia destes hei-de vir buscar algumas palavras suas para enfeitar o Xaile de Afectos que estou a tecer. Permite-mo?
Abraço
Olinda
Olinda Melo
ResponderEliminarApreciei o seu comentário
Claro que pode utilizar as minhas palavras
Inverosímil, mas muitíssimo interessante e imaginativo, este texto.
ResponderEliminarÉ bom sorrir com estórias fantásticas!
Fazem-nos evadir da monótona realidade.
Um beijo.
Um texto encantador, que começa logo de forma sugestiva... Muito bom...
ResponderEliminarNão é excelente, é soberbo. E para quem dança com cães de barro, meias pretas ficam-lhe a matar. Espero que o dono não tenha mordido demais. É que não despacha quem balanceia as ancas daquele jeito. Nem como primeiro despacho.
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ResponderEliminarAcontece, por vezes, que os "absurdos" ganham sentido, quando impregnados de uma certa realidade sugerida pelo texto ou (re)criada pelo leitor.
Assim se cumpre o contrato de leitura, assinado pelos intervenientes na comunicação: autor/texto/leitor.
Considerações literárias à parte, são sempre momentos de fruição e aprendizagem, o que levamos daqui.
Lindo. Muito bem escrito. "Imagens" da escrita fabulosas, mestria e encanto. Senaualidade, o domínio perfeito dum mundo irreal e contudo tão quase tocável e "aceitável" como normalidade. Adorei! Fantástico. Um bfsemana!
ResponderEliminarparte integrante de uma obra que tanto gosto me deu prefaciar, o seu "Caçador de Relâmpagos", este conto, como a Olinda referiu, é um sucedâneo de absurdos magistralmente narrados.
ResponderEliminarfoi um prazer relê-lo, estimado Eufrázio.
abraço amigo
Mel
É mais fácil existir uma estrela com o teu nome, duas meias pretas à tua espera do que existir um cão que responda quando te chamam!
ResponderEliminarPorra! não percebi nada da história! afinal, quem é a senhora???
Um abraço e saúde
Pata Negra
ResponderEliminarUm dia talvez ~vais perceber
o que não quiz dizer
tão so aflorar
e quando perceberes será um espanto
quando o espanto não surpreende porque espantarmo-nos é a delícia de sentir o sangue a ferver.
ResponderEliminarde absurdos, está a vida repleta. estes são magníficamente orquestrados num tango em que as meias pretas exigem saltos altos.
Adorei.
Um texto surpreendente. Um pouco fora do que habitualmente nos oferece.
ResponderEliminarUm último despacho de poder ou de amor?
Bj. :)
Óptimo!
ResponderEliminarUma aproximação deliciosa ao surrealismo.
Recuperaste bem o ambiente anterior. Deves continuar.
Abraço
Ainda um dia destes hei-de descobrir e ler este "Caçador de Relâmpagos", que muito curiosa me deixa perante os lindíssimos excertos que já aqui foram publicados.
ResponderEliminarBeijos
Branca
assim se decide o destino doa cães (de barro) e a suave textura das meias (pretas).
ResponderEliminarestou certo que as pernas da augusta senhora o merecem.
saudo o regresso a este registo.
abraço, meu caro Eufrázio
ResponderEliminarHá "absurdos" que são o que parecem, e outros que apenas assim se vestem, para que vejamos que não o são.
Muito bom!
Um abraço
E ainda dissem que as meias pretas sairam da moda...
ResponderEliminarMandamos no mundo, isso sim.
bjs nossos
Um belo conto e com elegância das meias pretas.
ResponderEliminarUma estória surrealista ao jeito dos tempos que vivemos...
ResponderEliminarHa que saber vestir-se de absurdos, para poder dar algum sentido às coisas. Fantástico, adorei.
ResponderEliminarFiquei com vontade de caçar o "Caçador de Relâmpagos".
Beijo
Sónia
Muito interessante e com uma certa magia!
ResponderEliminarGostei imenso de ler.
Bjs
"Na verdade neste chão de asas e mares desgrenhados, flutuamos tão leves que nem a morte sente os nossos passos. "
ResponderEliminarTudo dito!
da elegância da imagem à elegância das metáforas
ResponderEliminarum "pisar" dançarino
deslizar sensualissimo na passerelle poderosa do amor
onde
"nothing else matters"
belissimo, Eufrázio
um beijo
A sua escrita é muito cativante, além de linda.Gosto muito de ler.
ResponderEliminarBeijinhos.
Então por enquanto fica o espanto...e pensarei na senhora
ResponderEliminardas meias pretas a despachar...
Como sempre muito bem escrito por
si. Só os escritores têm tanta
imaginação!
Beijinhos
Irene Alves
Só quem sabe consegue escrever assim e eu adorei conhecer mais esta faceta do Poeta.
ResponderEliminarUm beijinho
Sonhadora
É na dimensão da arte e da criação estética que as palavras assumem compromissos, fugindo do que é esperado, do que é certo, do que é errado. Nessa dimensão tudo é possível, nada é absurdo, tudo, simplesmente é. Gostei muito. Abraços.
ResponderEliminarUm texto singular, de uma elaboração requintada, que apreciei imenso. Bj Ailime.
ResponderEliminarNada surpreendente num 'mar arável'.Faz-me lembrar a poética de um conterrâneo que diz que 'a expressão reta não sonha' e é preciso transver o mundo.
ResponderEliminar_ quero muito é ficar apreciando a 'senhora das meias pretas' e claro seu equilíbrio versátil.
abraço
curiosamente fora do registo que nos tem proporcionado e habituado...todavia gostei das imagens que incidem sobre o fantástico texto...Obrigado pelo momento!
ResponderEliminarTão distraído com relampagos
ResponderEliminarDeixei passar este
Despertei
não sei se com um trovão de meias pretas
se com o ladrar do Dique
E tudo poderá ser aquilo que imaginamos. Permitamos que as palavras se aproximem e nos despertem.
ResponderEliminarAbraço
cvb
Para que serve a criação do poeta, senão para nos salvar das garras do cotidiano sem cores e mistérios?
ResponderEliminar;)
Esta "história" está sublime
ResponderEliminarBem melhor que a outra
Gosto mais
Se eu pudesse
assinava o despacho
princesa
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