Tímbricas as vozes resgatadas aos pássaros silvestres, mesmo que a chuva purificada se precipite nas nossas asas improváveis.
Cantam a horas certas mas nós continuamos a não reconhecê-los pela voz.
Não fora ainda a sombra dos cães no espelho da água, a deslocar-se vagarosa - como seria possível saber ouvir em silêncio o ladrar desta vida?
Na verdade atravessámos uma série de estações, apeadeiros vertiginosos, com mais ou menos estrume na caldeira das árvores, mais poda menos poda, nos tempos incertos de sempre, só para projectarmos palavras insondáveis.
- Os cães só têm força no maxilar inferior. Se o prender com o polegar não será mordido.
- Nunca dei grande valor a esse dedo. Está a desconversar.
- Confirmo que a Lassie está grávida.
- Não prescindo do perfume que os livros me oferecem, nem do insuportável pó das bibliotecas.
- Reparo que não está disponível, mas recordo que foram os cães que nos aproximaram.
- Nós aproximámos os cães.
- Seja como for, os velhos não deviam ter idade para mentir.
- Que idade tem a sua cadela?
- É inocente.
- O Dique está no ciclo confortável dos que desejam ser avós, mas ainda não têm filhos.
- Estamos perante uma agradável desconstrução da fala.
- Faz recordar-me Lobo Antunes que já não se considera escritor mas tão só um instrumento de Deus para a escrita. Pegam-lhe na mão e ele escreve.
- Está a desconversar.
- Oiça. Era uma vez um país à beira-mar betonado, paraíso de lágrimas a prestações. Um deserto de braços caídos e alguns resistentes. Duas lágrimas hoje, uma outra amanhã. Lágrimas nunca choradas ao mesmo tempo, com medo de se afogarem.
- Fui eu que lhe peguei nas mãos.
- Por um instante oiça como são harmónicas e aveludadas as vozes dos pássaros na sombra dos cães. Como tudo se move e transforma neste palco, a partir do nada.
- A noite caíu para nos abrir os olhos.
- Certo. Traga os cães. A partir de hoje seremos uma família. De facto.
30 comentários:
quem assim escreve não desconversa.
beijo.
A noite caiu para nos abrir os olhos. Que fiquem sempre abertos. E os ouvidos capazes de ouvir o silêncio.
Abraços.
Os cães rosnam pelas sombras dos acontecimentos que traduzimos em brilhos a ´percorrerem por nossas vidas.
Cadinho RoCo
Há sempre um pássaro que canta. Pouco lhe importa se reconhecemos ou não sua voz.
Abraço.
Belíssimo texto.
Quando lhes dão asas, os cães "voam" muito para lá dos homens e não se mordem.
Um belissimo texto de vida...
Quem assim escreve , náo vai querer a "aposentação" da escrita...
Só há dias comecei a vir até aqui, e já o coloquei na placa da minha lojinha....
- Certo. Traga os cães. A partir de hoje seremos uma família. De facto.
Está tudo dito.
Lindo!
um bjo
Lindo, como sempre. Parabéns.
afinal há tantas formas de se "SER" uma família
beijos
Conversa de qem não vive uma vida a prazo.
De facto.
:)
Beijos, bom fim de semana
Um tom de parábola. "A noite caíu para nos abrir os olhos". Ao menos que assim seja.
Exorcismo dos absurdos dos dias, pela desconstrução...bem controlada!Admirável:))
Querido E.
um dia cheio de "laranjas"-
doces. de casca fina....
e que o vinho se re.faça.
(bom o sorriso de vavadiar)
Bom blog
- Cão que ladra não morde.
- Parece-te!
- Como assim?
- Ora! até parece que não sabes o que aconteceu ao meu primo tordo.
- Nem sabia que tinhas um primo tordo. É aquele do cavalo á desfilada no meu peito?
- Não. Não é o tordo-homem é o tordo-tordo. O Rodrigues acertou-lhe com um chumbo e o seu perdigueiro entusiasmado, correu para ele a ladrar a ladrar e além de o filar deu-lhe uma dentada numa asa.
- Há dias assim para as nossas cores. Lamentáveis. Não queres voar um pedaço comigo para afastar as mágoas?
- Não posso. Tenho cá família da terra. Melros e tentilhões.
Interessantíssimo. num registo diferente do seu habitual mas muito bom.
E na verdade, uma família só é uma família com os cães para que se possam ouvir os cantares dos pássaros nas suas sombras.
e sem desconversar
.
texto fabuloso, Eufrázio
também na prosa
.
.
.
__
e saio
rendida
à palavra
humana.
humana
um beijo
Fantástica a prosa de vida urgente.
Sem des.conversas.
Onde se acresce a plenitude de um sentir em des.construção.
Um abraço
Sempre,
____ p.
Gostei de ler!
Domínio, muito domínio da palavra!
:))))
Eufrázio,
vou deixar de "seguir" o teu blog porque hoje, aproveitando um tempinho livre, já o adiccionei à minha Lista :))
Beijos, bom domingo
há vozes harmoniosa mente indispensáveis
e tu sabe.lo
.
um beijo ,em contra.mão
"A noite caíu para nos abrir os olhos"
Belíssimo texto!
Um abraço.
Também concordo que estamos frente
a uma parábola... e excelente! De
um lado um desarticulado quotidiano, do outro o saber escutar... nem que seja os pássaros
(pois parece-me que escutar o Outro
era coisa difícil ali!). Texto muito conseguido... é a minha opinião, claro!
ao nível da mais alta literatura...mas ninguêm se lembra de homenagear este homem?????????????????????
Ora aqui está uma conversa (im)provável.
E, como li algures, "cão que não ladra não cumpre a sua função", vamos mesmo ladrar, nem que mais não seja a sombras de pássaros... ou o seu inverso, sei lá, já estou baralhada no sentido do voo.
Boa semana, caro Eufrázio
Mel
bom dia...(está cá? a a.laranjar? ou já foi "Gaudiar"?
______________
deixo um pássaro. não de fogo. antes de água.
bjos.
(piano)
Belíssimo.
"oiça como são harmónicas e aveludadas as vozes dos pássaros na sombra dos cães.Como tudo se move e se transforma..."
Bom conselho!
Excelente prosa!
Ah! Como eu precisava
ouvir, sentir o belo da natureza,
contornar algumas transformações e prosseguir!...
...sem gotas de cristal
rolando p´la face!....
princesa
"Lágrimas nunca choradas ao mesmo tempo, com medo de se afogarem...".
assim é! não há Dique que salve!
(talvez um "cão de água" rsss))
abraços
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