quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

ILHAS ADJACENTES




Na alquimia do tempo que faz, há sempre um albatroz que atravessa as arcadas da memória, desfaz-se em gestos de ternura, dissolve-se no pôr-do-sol, invade-nos o sonho, passo a passo.

- Desejo que germines em vagas nas arribas, que rebentes a marulhar no labirinto das areias.

- Desejo que nunca encontres marinheiros cegos, muito menos na esquina das palavras a apascentarem barcos prateados com mãos incompletas. Desejo-me ficar aqui no perfume dos limos, mesmo que as vagas só despertem por sobre os restos do último naufrágio.

- Sejamos navegantes desgrenhados contra todos os destinos.

- As melhores viagens acontecem sempre antes da partida e no regresso. No ciclo das marés. Só assim consigo partilhar o ardor das velas do nosso mar.

- Pareces a ministra que conheci no dia da remodelação do governo.

- Meu amor - rema.

- Não consigo dormir.

- Vamos fazer amor?

- Só nos espelhos.

- Hoje não estou a gostar do modo como os espelhos nos olham. Este rio está uma sopa. Ressoa brando na fissura das pedras.

Repara como a praia deserta se amontoa de areias sem abrigo.



Inesperadamente um albatroz poisou magestoso, aos nossos pés. Fixou-nos com olhos vivos e perguntou-nos baixinho num afago de asas - " de que cor são os meus olhos? " - e tu não soubeste responder.

- Apetece-me viajar. Porque não vamos ao Bugio?


Construimos um barquinho de papel e partimos ao sabor da brisa.

Lá estava, sentado nas águas do rio, imponente, coluna na vertical e sereno. Sábia fortaleza, sempre alerta - hoje um farol a piscar os olhos no estuário do Tejo, como nós - ilhas adjacentes.


- Vamos fazer amor?

- Ainda não disseste a cor dos meus olhos

35 comentários:

  1. Fazer amor nos espelhos do rio. Uma prosa invejável.

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  2. que texto tão bonito!!
    senti-me nesse barco de papel. tranquilamente pálida.


    um grande abraço

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  3. Magnífico!
    Vai fazer amor (amá-la)no espaço das marés, no leito da espuma. Vai, porque os olhos podem ficar cerrados e o amor conhece todos os caminhos.

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  4. Estas palavras estão insufladas de magia, desta vez parecem sopradas de muito de dentro do coração.
    ~CC~

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  5. Um barco de papel que vogaaaaaaaaa ao sabor do sonho da palavra..."qual a cor dos meus olhos?" A do sentir...
    A tua prosa é...linda!
    Bj.

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  6. Majestoso embora, mas ave!
    Adjacentes sim, mas sempre ilhas.

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  7. "- Desejo que nunca encontres marinheiros cegos, muito menos na esquina das palavras a apascentarem barcos prateados com mãos incompletas..."


    e eu pobre navegante desejo que nunca se cale!


    NUNCA!




    beijo.



    .piano.

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  8. a (in)comunicabilidade dos espelhos.

    (ou ilhas adjacentes. inamovíveis)

    fatais as vagas. que passam.
    salva-se o perfume dos limos. que persitem.

    ... e a palavra poética! a tua.

    abraços.

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  9. "há sempre um albatroz que atravessa as arcadas da memória"


    sempre.



    grata pela visita



    iv*

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  10. Ia jurar que os albatrozes têm olhos cor de mar. Mas posso estar enganada... Podem ser as gaivotas.

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  11. "Desejo que nunca encontres marinheiros cegos, muito menos na esquina das palavras a apascentarem barcos prateados com mãos incompletas."

    .

    desejo que continues assim.

    a remar. a fazer-nos sonhar...ainda!

    Maravilhoso é o que te digo.

    Um beijo

    bom fim de semana.

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  12. Senti-me embalada no Rio...
    Os olhos são cor das folhas e das cascas de arvores, da agua dos mares e rios, regatos, fontes, são da das avelãs, do mel, do mais escuro e do mais claro, são da cor dos espelhos que nos reflectem.

    Obrigado pela visita.

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  13. Excelente!
    "Sejamos navegantes desgrenhados contra todos os destinos."
    Sejamos...
    Um abraço.

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  14. Claro e objectivo?
    Ambíguo e subjectivo?

    "Se mueren de amor los ramos."
    Lorca

    Vou ter que ler algumas vezes este texto.
    Apresenta-se novo e subjectivo depois de uma leitura clara.

    J.A.

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  15. Invadir o sonho que germina em vagas, ainda que não se saiba a cor dos olhos...

    Magnífico texto!

    Beijo

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  16. se sábia eu fosse atrever-me.ía a dizer que são da cor da vida esses olhos que assim olham ....


    não sendo....
    fico ilha a ler.


    encantada.


    (obrigada E.)



    .piano.

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  17. Belíssima prosa poética. Devagar, ao ritmo das águas.**

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  18. Eufrázio,

    .BELO.
    porque fico sempre com uma vontade de ler mais??
    e, tomei 'nota'
    "...As melhores viagens acontecem sempre antes da partida e no regresso. No ciclo das marés... "

    bom fim-de-semana
    o meu sorriso :) e um...'até já'
    mariam

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  19. dos melhores textos que - para mim - até hoje escreveste



    .
    um beijo

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  20. Sim, importante é saber a cor dos olhos...
    Bom domingo.

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  21. Naufrágio, ...a cor dos olhos, um albatroz... imagens que se sucedem na poética beleza das suas ilhas adjacentes...

    Bom domingo!

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  22. " Sejamos navegantes desgrenhados contra todos os destinos"
    .
    texto MÁGNÍFICO
    .
    .
    saber fazer Amor das/com as palavras

    a cor dos olhos só pode ter o ardor do mar

    ______
    um beijo Eufrázio

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  23. Ficção poética?

    Poesia ficção?

    De qualquer maneira, trata-se dum texto imaginativo e rodeado de algum mistério,

    como convém à poesia.


    Bjs

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  24. como sempre, inesperado, mas surpreendente...

    abraço

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  25. Ainda não disseste a cor dos meus olhos.Mágoa? Insaciedade?
    Que curvas acontecem na paixão que nos evapora?

    Belissímo texto.


    abraço

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  26. Mais uma prosa poética
    que nos remete para elementos
    da Natureza.

    Mais um momento...
    Momentos... (re)vividos
    por dentro
    com os elementos
    que nos embalam
    que nos lembram
    que nos são gratos
    ainda que desgrenhados!

    Claro que eu sei
    a cor dos teus olhos!!!

    E um dia,
    di-la-ei
    ao teu ouvido
    num barco de papel.

    princesa

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  27. Belíssima prosa.

    Ou será belíssima poesia!

    Não sei. Apenas sei que também eu vogaria num barquinho de papel e me perderia no olhar de um albatroz.

    Um beijo

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  28. tanto romantismo no passeio de um singelo barco de papel.


    um abraço, filipe

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