domingo, 11 de janeiro de 2009

UM CONCERTO DE PÁSSAROS

Picasso - rapaz a guardar cavalo

Uma saraivada de granizo caía abrupto nas nossas vidas, queimava-nos a alma até aos ossos. Nunca mais chovia água de beber.

Lânguidos os rios mal desaguavam de tanto frio e solidão. O mar vadiava nas frinchas das falésias e os barcos ancorados, aguardavam nos mastros outros ventos.

Foi então que os galos cantaram. Mais cedo. Inutilmente pois ninguém dormia.

Havia uma certa efervescência no ar. Um respirar ofegante.

Nas ruas - as esquinas dos prédios voaram - para os cegos abrirem os olhos. Nas árvores - o Inverno colaborava. Nem uma folha para esconder o arrepio dos pássaros. Nem um piar. Nem um sussurro no mar.

Inesperadamente uma criança atravessou a rua.

Aquartelados os lobos uivaram. Alguém disparou.

Os galos cantaram de novo. Inutilmente pois ninguém dormia. No ar - farrapos de uma certa neblina. Nas ruas - as esquinas dos prédios permaneciam despovoadas de cegos. Os rios despertavam e o mar dava um sinal de chamada.

O vento amainou para um afago de velas e os barcos partiram para a faina.

O Inverno - por cima dos escombros - convocou-nos para um concerto ao ar livre. As folhas rebentaram nas árvores.

Uma criança, renascida das cinzas, desafiou o uivo dos lobos - começou a cantar com os pássaros.


28 comentários:

  1. E ainda a havemos de a olhar, qual Fénix, a voar com os pássaros, por cima dos lobos e dos uivos.
    Muito bom, como sempre.
    Abraço

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  2. Eufrásio,

    Fantástico poema!

    e termina com um halo de esperança :)

    boa semana
    um abraço
    mariam

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  3. Quase um poema para rezar... Quem ainda tiver fé.
    Um abraço.

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  4. O canto depois do incêndio. Um belíssimo texto a afirmar a vida para além da demência.

    Um abraço.

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  5. ai os lobos. nas asas dos pássaros.

    beijo para ti e cãezinhos.

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  6. A esperança na figura de uma criança...

    Beijos

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  7. Lânguidos os rios mal desaguavam de tanto frio e solidão.
    ...uma criança renascida das cinzas.

    Roubo este pedacinho maravilhoso.
    Um abraço com carinho e uma boa semana.
    Bjs

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  8. Poema tristamente belo,
    acabando com uma renascença,
    tal o fenix que renasce das suas cinzas..

    Beijos

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  9. Fico-me, ainda, pela inutilidade do canto dos galos...embora tu, poeta, num passo mais à frente, me acenes em palavras elegantes um gesto de esperança!

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  10. Ai, tanto nos queima a alma até aos ossos, não é?
    Que nos valham os/as Amigos/as!
    Abraço-te, Companheiro.

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  11. ... o Inverno pode ser (é) uma estação assustadora para muitos. Para os mais desprotegidos da sorte ( conveniente de invocar mesmo sabendo que a roleta do jogo social está legal e democráticamente viciada, caso contrário, o azar não bateria sempre à porta dos mesmos... ) que estão na expectativa que o telhado não lhes caia na cabeça, que o banco alimentar não entre em colapso financeiro ou que o tempo das estações mais quentes chegue rapidamente para que possam afinar as gargantas e acompanhar a voz da criança cantando com os pássaros e desafiando os lobos todos deste mundo.

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  12. por vezes uma sílada e a metáfora se faz lume...

    por vezes o (in)esperado faz desaguar avenidas.
    de gente. viva...

    abraço, Poeta.

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  13. e
    em uníssono
    foram vida
    e verdade




    ...




    saudades de teu canto.

    ..

    bom ano!

    @-,-'-

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  14. o outono desfazia os nós.

    estava frio
    e
    um lençol de silêncio respondia pelo mundo.

    até os barcos suspiravam um ardil de mar
    e a criança com olhos de pássaro
    atravessava lentamente uma primavera ao colo.

    _______

    o mar
    aqui
    aquietou-se
    .
    um beijo

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  15. Enquanto houver uma criança

    capaz de desafiar os lobos


    com a voz de uma canção,


    há esperança!


    Obrigada pela visita que me trouxe até aqui! :)

    Beijo

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  16. Este seu texto poético transporta-me para o imaginário real
    Tempestade em qualquer lugar
    no coração, na terra no mar
    Tempestade que alastra
    sem parar!!!???
    Os Homens e a Natureza
    unidos para bem da continuídade de espécie...
    Que concerto lindo!!!
    O tão necessário
    O da Esperança!

    princesa

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  17. "O Inverno - por cima dos escombros - convocou-nos para um concerto ao ar livre. As folhas rebentaram nas �rvores."

    porque o poeta grita a renova�o a vida explode.

    um hino!

    um prazer ler o que escreve,
    abra�o da Mel

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  18. E, o velho se fez novo!

    depois da tempestade vem sempre a bonança. Palavras já ditas, sei, mas a vida são ciclos...ascendestes.

    Ascendente o teu último parágrafo. De esperança.

    Gostei muito.

    um beijo

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  19. Ainda há pouco uma amiga minha dizia que adorava comer neve... franzi o sobrolho: comer neve? Sim, dizia ela que isso vinha do tempo em que faltavam outras coisas mais nutritivas que a neve e então a caminho da escola ela e as colegas enchiam o vazio da neve fresca que caíra de noite... abominavam o Verão... e com razão... tempos que o tempo pode fazer voltar...

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